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I wish I was dead already


[30 de abril de 2016]



Há um quadro de autoria de Ramonn Vieitez que me parece icônico quanto à sua pesquisa como criador de imagens. Intitulado “Teo at Paris”, a pintura apresenta uma figura com traços joviais sentado diante de uma mesa e enquadrado no canto de uma sala. É nesse espaço compositivo asfixiante que somos apresentados aos diversos objetos que acompanham Teo – canecas, copos e taças se avizinham em um espaço em que café e vinho são possivelmente amigos de muito tempo. Que tipo de ambiente é esse onde uma mesa se transforma na base do personagem? Trata-se de um escritório ou de um quarto? Criando diferentes possibilidades de leitura por parte do observador, aí também vemos jornal, celular, laptop, livros, cadernos e rascunhos de desenho. Poderíamos aproximar Teo do fazer de um escritor, do designer ou mesmo do artista visual. O tempo passa, a abertura da imagem se escancara e essa série de elementos segue em seu mesmo lugar.

O que me parece interessante não se esquecer aqui é que Teo, seja lá quem ele for, está em Paris. Porém, em um ponto de vista distinto das tradições iconográficas que alçam Paris ao espaço da experiência urbana, da luz e do contato com as maiores coleções de pintura do mundo, essa imagem proporciona uma outra experiência da cidade. Teo está encasacado, mas o máximo de contato com algum resquício de natureza se dá a partir dessas plantas ao outro lado da mesa. Teo possivelmente nasceu em um momento da História em que se pode vivenciar Paris de dentro da sua casa, a partir de livros de imagens e da internet. Teo pode se relacionar perfeitamente com Manet sem nunca sequer pisar na Europa. Há nessa imagem, então, diferentes tipos de deslocamento que vão desde a centralidade da imagem que é desestabilizada pela posição de seu corpo até essa expressão aparentemente vazia que busca algo que está fora da imagem e provavelmente longe de Paris.

Gosto de olhar as imagens que Ramonn Vieitez tem criado e enxergar nelas essa mesma potência do sentir-se deslocado a partir do emsimesmamento do que rodeia esses esbeltos jovens pintados. Diferentemente, por exemplo, de um Egon Schiele onde a anatomia visceral dá o tom de uma presença no mundo que busca um espaço para si longe de padrões hegemônicos, os corpos pintados por Ramonn parecem se colocar de modo posado e até confortável perante o público. As imagens se aproximam de distintas tradições da retratística ocidental, mas não se associam a identidades específicas. Sejam de corpo inteiro, de perfil ou de três quartos, esses jovens estão mais próximos dos manequins no duplo sentido da palavra – os bonecos de plásticos que decoram as vitrines e os modelos masculinos que estampam as revistas de moda com seus olhares distantes.

As primeiras pinturas de Ramonn mostram essas mesmas figuras geralmente em poses contornadas por árvores, plantas e a experiência do espaço externo à casa. Nenhuma delas possui uma atitude ativa perante o ambiente em que se encontram entregando seus corpos à contemplação do espectador e se vertendo em uma espécie de prolongamento dessas paisagens que, longe de serem arcádicas, endossam a tensão psicológica desses corpos que envolvem. Figuras encapuzadas se fazem presentes desde 2012-2013 e a partir daí há uma maior articulação de seus corpos com espaços citadinos. Há desde essa série indícios fragmentados de narrativas que colocam esses jovens em uma atitude mais trágica e narrativamente apresentada como o momento posterior ou antecedente a um crime.




Não é à toa que um desses retratos feitos pelo artista mostra um encapuzado usando uma camisa que diz “American horror story”. O gosto pelo sangue e pela violência que uma pintura como “Como um condor, ele comia morte no café da manhã” também demonstra advém não de um desejo de recodificar a cotidiana violência de Recife, a cidade-natal do artista, mas sim de uma paixão pela ficção serializada, pelos livros e pela cultura pop. E esse não seria outro tipo de deslocamento – ou seja, seria possível inseri-lo dentro das narrativas históricas de uma arte em Pernambuco? Essas gotas de sangue são maquiagem e as pichações que permeiam as cidades pintadas pelo artista são apenas cenário – não há medo aqui de qualquer tipo de frivolidade.

É essa ausência de receio em sua busca por certa plasticidade frívola da melancolia que permite a Ramonn se aproximar e intitular exposições e projetos como “There was a boy”, “Enjoy the silence” e “Ultraviolence”. Nat King Cole, New Order e Lana del Rey compõe uma espécie de templo da melancolia feito por distintas vozes que atingiram massas entregues ao poder hipnotizante de seus versos. Além desses títulos, seu interesse pela música era perceptível, por exemplo, na individual “There was a boy”, na Amparo 60, em Recife, onde o artista opta por não simplesmente preencher o espaço vazio da galeria, mas de inserir a música que dá título à exposição como presença constante no espaço, além de pintar algumas paredes de vermelho. Nesse sentido, a composição visual sugerida por alguns modos expositivos de Ramonn dialogam de modo mais próximo com uma imersão instalativa dada a partir da pintura, em diálogo próximo ao efeito persuasivo que muitas vezes a música afeta nossos corpos.

O tom entre o presente e referências de cultura visual com tons de brechó se faz bem marcado em “A seita”, longa-metragem recente, de 2015, de direção de André Antônio. No filme, uma série de gravuras de Ramonn surge em cena e contribui com o desenrolar de uma narrativa passada no ano de 2040. Curiosamente, esses vinte e cinco anos à frente do agora se configuram visualmente como um misto de objetos das mais diversas épocas e com atitudes de flanérie e ruinismo que certamente fariam inveja a um Baudelaire. O filme e as pinturas de Ramonn parecem apontar que qualquer imagem realizada no presente rapidamente ganha um tom sépia pela nossa capacidade de instrumentalizá-la e relacioná-la a passados iconológicos e também por um fluxo contínuo de aparições de outras imagens.



Como disse Lana del Rey, em 2014 – justo numa entrevista para a divulgação do lançamento do CD “Ultraviolence” –, “I wish I was dead already”. O tempo se apresenta tão fugaz e nosso alcance através da escrita, produção de imagens e da música parece tão instantâneo, que no lugar de vivenciarmos o agora e aguardarmos a morte, nossos pensamentos estão voltados para um amanhã já com a morte ao lado. Em um espaço virtual em que tudo é imagem, como não percebermos diariamente que mais do que “querer estar morto” já matamos muito daquilo que já fomos?

Aquele Teo pintado certamente não estava nem em Paris, nem em Recife – estava apenas numa pintura. Ele não pode “querer estar morto” porque toda obra de arte tradicional já é uma imagem embebida de morte. De todo modo, a atitude encontrada nele e nas figuras humanas pintadas por Ramonn Vieitez parece demonstrar esse mesmo desinteresse ansioso pelo presente e esse olhar em busca de algo que ainda não se sabe e que foge de nosso alcance. Na dúvida quanto ao estado das coisas no presente, abraçar a fabulação proporcionada pela cultura de massa contemporânea certamente é uma saída. E fica a curiosidade de quais outras trilhas sonoras esses encapuzados seguirão no futuro.


(texto publicado originalmente no catálogo de Ramonn Vieitez relativo à exposição "Assim - enjoy the silence", realizada na Portas Villaseca, no Rio de Janeiro e no Museu do Homem do Nordeste, em Recife, entre 2015 e 2016)
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