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Inútil paisagem

Otavio Schipper
[24 de setembro de 2014]



A exposição individual de Otavio Schipper na Galeria Millan, em São Paulo, possuía um título convidativo: “pequena paisagem”. Entre 29 de abril e 21 de maio, o público poderia ter um encontro com a experiência da paisagem. Tenhamos, então, essas duas palavras como ponto de partida e estabeleçamos um diálogo com as imagens propostas pelo artista.

Diferente de uma exposição individual onde o cubo branco é todo ocupado por objetos facilmente vendidos na tradição das belas-artes (como pinturas, esculturas e desenhos), Schipper opta por dilacerar o espaço sacralizado da galeria comercial. Não se trata de uma atitude inusitada, visto que esta também possui sua trilha do site-specific já percorrida, por exemplo, por projetos recentes de Renata Lucas. De todo modo, em um presente onde feiras de arte e a projeção internacional otimista de um Brasil multicultural deixam muitos artistas num estado histérico, é de se admirar uma proposta que lida com a galeria, essa vitrine para compra, através de outra perspectiva.

Parece-me importante, portanto, se pensar sobre o uso da palavra “pequena” para o trabalho ali mostrado. Poderíamos considerar a exposição como dialógica a questões latentes da escultura e de proposições instalativas onde o percurso do corpo é essencial. Eis que dentro do espaço fechado surgia, quase como que um tronco de árvore podada do solo, um grande poste de madeira. Cheio de reentrâncias, com um corte irregular, mas nem por isso rústico, ele se prolongava até chegar em duas retas por onde passavam cabos de energia.



Há um dado formal que cabe ser frisado: de pequena essa instalação nada possuía. Um dos dados mais interessantes era, justamente, proporcionar ao espectador uma proximidade física com algo com o qual nunca dialogaríamos nessa mesma configuração. Havia o impacto de vermos um elemento que remete ao ambiente externo trancado numa arquitetura, uma fusão de espaços que explicitava o caráter ficcional e artístico dessa proposta.

Ao circular por dentro da galeria, o artista proporcionava uma mudança de ponto de vista; se na entrada olhávamos esse poste (agora transformado em objeto) de baixo para cima, fruindo nosso lugar diminuto em comparação a ele, no segundo andar da exposição era possível estar de frente com a parte superior de um segundo poste. Os puleiros de pássaros chegaram à altura dos nossos braços.

Diferente dos postes de rua geralmente encontrados nas ruas de São Paulo, ou seja, feitos de concreto e ferro e a apresentar um grande número de fios, aqui sua estrutura era mais natural e remetia a paisagens estereotipadas que apontam para terras distantes do Brasil. Pesquisas recentes mostram que esses postes de madeira são, além de menos agressivos visualmente, mais ecológicos e tem mais capacidade isolante. Para a experiência de um brasileiro, portanto – ou ao menos para a minha -, esses postes podem ser interpretados como pertencentes a uma cultura outra.



Através desses dados que dizem respeito à fruição geográfico-cultural desse trabalho, poderíamos pensar a respeito da ideia de paisagem. Ao se apropriar de objetos geralmente usados ao ar livre, Schipper cria por um período de tempo uma paisagem artificial dentro da galeria. Por mais que haja uma monumentalidade da matéria desses postes, essa amostra ainda pode ser ponderada como pequena em comparação com sua disseminação pelo espaço urbano. A contribuir com essa reflexão sobre esse transplante entre espaço público e privado, o público também tinha à sua frente os “membros inferiores” do segundo poste aqui comentado; o chão que permitia que ficássemos de frente com a estrutura de cima do poste era o mesmo que se transformava em teto quando nos colocávamos perante sua conexão com o chão da galeria. Aí, diferentemente do primeiro poste, dois novos elementos ampliavam nossa paisagem: trilhos de trem.

Poderíamos, então, relacionar esse trabalho aos ideais de transporte público, movimento e progresso, tão caros ao Brasil e à explosão industrial de São Paulo vista no século XX. Ao literalmente conectar o sistema elétrico da galeria com os postes banais da rua em que está situada a galeria, é possível enxergar uma vontade de conectar o campo da criação fantasiosa por meio de imagens com a latência entrópica de uma metrópole como São Paulo.

Ao final do dia, porém, ao refletir sobre esse monumento à relação do homem com a eletricidade, preferi deixar os dados históricos e contextuais de lado e me concentrar na pequeneza proclamada. Se esse dado no que diz respeito à escala não é verificável, o mesmo não se pode afirmar quanto à funcionalidade e utilidade desses trilhos e postes. Foi criado, então, um reduto que possibilitou que o homem se colocasse numa relação quase que de adoração a um aparato tecnológico.



Talvez, melhor do que nos guiarmos pelo conceito de uma “pequena paisagem”, melhor seria recorrer a Tom Jobim e elevá-la ao patamar de uma “inútil paisagem” – no melhor dos sentidos que a inutilidade de um convite à contemplação ao corriqueiro pode trazer àquilo que é humano.


(texto publicado originalmente na ArtNexus de setembro-novembro de 2014)
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