Jogar os dados
[03 de junho de 2025]
Recentemente, um amigo que também trabalha com curadoria discutia comigo a respeito de critérios de seleção de artistas. Ele argumentava que, de acordo com sua percepção dos sistemas das artes visuais, existem artistas que possuem uma trajetória que pode ser lida como sólida devido à sua participação em projetos institucionais que denotam um trânsito e ramificações de relações profissionais. Enquanto isso, há outros artistas que, por ainda não terem tido a oportunidade de um tráfego institucional maior, não podem ser encarados como estando no mesmo patamar. Faltaria uma certa experiência que faz com que eles possam ser vistos desde uma outra chave; isso não diz respeito exclusivamente à sua jovem idade e pode se referir a artistas com décadas de experiência, mas ainda sem fôlego institucional. Trabalhar com algumas dessas pessoas, segundo ele, seria uma espécie de “aposta pessoal”.
Esse termo muito me intrigou; buscando a etimologia da palavra, me dei conta de que, na língua portuguesa, “aposta” vem do latim apposita, “coisas colocadas uma ao lado da outra” que se relaciona com o verbo appono, que também circunda o campo semântico de verbos como “apontar”, “designar”, “delegar”, “colocar perto”, “aplicar” e “adicionar”. Se, portanto, tivermos essa concepção latina da palavra e deixarmos de lado o seu uso tão associado aos jogos de azar, toda curadoria é naturalmente uma grande aposta — e, claro, visto que as curadorias são feitas por pessoas permeadas por gostos, traumas e prazeres mui diferentes, toda curadoria não deixa de ser uma aposta pessoal. Lúcido devaneio, logo, é uma grande aposta.
Discussões sobre critérios de seleção no campo da curadoria — em especial na de artes visuais quando não há uma chamada aberta prévia — são elásticos e cada profissional tem definitivamente uma perspectiva muito diferente do outro; eu, por exemplo, sendo alguém nascido e criado numa família da classe trabalhadora do subúrbio do Rio de Janeiro, Brasil, e que passou toda a vida em instituições públicas de ensino, certamente não terei uma perspectiva semelhante a alguém, por exemplo, criado em um contexto de uma grande cidade do Norte hegemônico do globo. Não há — felizmente e infelizmente — regras, certezas e erros; é tudo uma questão de negociação, interpretação, empatia e ocupação de arquiteturas com imagens: o que faz e o que não faz sentido para um espaço específico?
Apostámos — Hiuwai, minha parceira em crime nesse projeto e eu — nesta seleção de vinte artistas aqui apresentados. Após conversarmos e analisarmos mais de uma centena de possibilidades, essa configuração de nomes nos faz muito sentido; ela parece representar a diversidade de trajetórias, práticas, círculos artísticos, gerações e mesmo diferentes culturas dentro da cena de artes visuais em Portugal. Muito distante de ser uma exposição de “jovens artistas portugueses”, temos perante os nossos olhos trajetórias que são tão assimétricas quanto as oportunidades que o sistema público e privado de artes visuais no país proporciona; com a certeza do “fracasso” desta seleção de artistas — visto que sempre se pode, muito facilmente, apontar o dedo e sugerir outros nomes, obras e narrativas —, optámos por, em lugar de criar critérios etaristas, curriculares ou mesmo geográficos, apostar em um mash-up de poéticas que conversa com a falácia intrínseca a qualquer projeto enfocado em uma área geográfica específica. Não há mapas do país, nem divisões por gerações; uma costura em zigue-zague é sempre mais interessante.
Dentre as diversas possibilidades que esta pesquisa gerou, ficámos especialmente curiosos com as práticas que são embebidas de um certo interesse no mistério e na fantasia. Distantes de imagens que de alguma forma assumem seu pertencimento ao território português ou mesmo que citam episódios históricos no país — sejam eles recentes e que pensem, por exemplo, os traumas do militarismo ou mesmo anteriores a isso e que ecoem as muitas violências coloniais impressas pelo Império português pelo mundo —, optámos por trabalhar com artistas que operam mais próximos da chave de convidar os espectadores para duvidar junto a eles — o que são essas imagens? Quais as suas camadas de interpretação?
A polissemia de suas poéticas nos intrigou e, quando distribuídas pela instituição, se transformam em um coro assimétrico que compõe esse nosso “devaneio”. A “lucidez” dele está, porém, no fato de que esses trabalhos e artistas também parecem constantemente preocupados com uma certa economia e elegância formal; há profundos mergulhos em oceanos desconhecidos em suas investigações, mas plasticamente os resultados de suas pesquisas não costumam desembocar em formas e sons que gritam, sangram ou se espalham de forma radical pelo espaço expositivo. Por mais que muitas poéticas lidem muito com o prazer, com a paixão e mesmo com o tesão, há sempre algo que nos permite ancorar visualmente na relação entre o corpo do espectador e imagens.
Ademais de suas similitudes quanto à forma como lidam com as imagens, acreditamos que essa seleção de artistas traz algo da diversidade que caracteriza a cena de artes visuais no país — enquanto algumas pessoas se aprofundam na investigação com linguagens com forte carga histórica como a pintura, o desenho e a escultura, outro grupo de artistas se enuncia como pesquisadores do vídeo, do audiovisual e traz em suas propostas uma abordagem mais multimídia; longe de se filiarem a uma linguagem específica, cada projeto levará para um caminho diferente.
Apostamos também que este grupo de artistas consegue dar conta dos desafios espaciais de um prédio como o da Galeria Municipal do Porto. O que poderia funcionar e não funcionar para um edifício como este e seus dois amplos andares, com grande pé direito e tão embebido pelo espaço externo dos Jardins do Palácio de Cristal?
No que diz respeito à arquitetura desta exposição, apostamos em uma ausência de divisão dos espaços no que diz respeito às práticas dos artistas convidados; como o andar de baixo tem um grande efeito devido à entrada de luz natural, ao passo que acima há uma maior penumbra, é certo que faz mais sentido termos trabalhos que dependem de um ambiente mais escuro ali, em vez de abaixo. De toda maneira, não se trata de isolar todos os artistas com essas práticas ali, mas ainda deixar algum espaço para uma conversa: que as pessoas que trabalham com pintura e estão nessa exposição possam estar em ambos os espaços e ladeadas de práticas que apelam muito mais a uma virtualidade da imagem. Enquanto isso, que alguns artistas tenham seus trabalhos distribuídos pelo espaço como se estivessem a pontuar e costurar a exposição dentro de um certo ritmo.
Esperamos que o público aprenda com esta exposição tanto quanto aprendemos em nosso processo de investigação que levou à sua realização. Que cada visitante possa, assim como nós, lançar metaforicamente os seus dados individuais e se intrigar com uma produção de imagens cujo caráter experimental extravasa o seu pertencimento geográfico. Que “Portugal” seja, por fim, um ponto de partida e não um ponto de chegada e que outras exposições e outros “panoramas” da produção de arte no país — tão “fracassados” como o nosso — sejam organizados em outras cidades e instituições.
Às vezes, na vida e na curadoria, abraçar o fracasso de uma narrativa é aquilo que precisamos para, aí sim, conseguirmos respirar fundo aliviados, arregaçarmos as mangas e coreografarmos temporariamente um espaço com isso que convencionamos chamar de obras de arte. Apostemos nos nossos fracassos.
(texto feito para o catálogo da exposição “Lúcido devaneio”, curado por Hiuwai Chi e Raphael Fonseca, na Galeria Municipal do Porto, Portugal, em 2025)