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Le petit musée


Ismael Monticelli
[24 de novembro de 2016]



A pesquisa de Ismael Monticelli se desenvolve a partir de diferentes linguagens. Se por um lado podemos perceber que seu olhar se constrói em diálogo com a fotografia e que algumas de suas obras são apresentadas nessa mídia, por outro lado não podemos fazer vista grossa à sua experimentação com a produção de múltiplos, a construção e apropriação de objetos e a apresentação de instalações. Fulcral à sua produção é a relação entre imagem e texto, mas sempre de modo distante da ilustração e da nostalgia do livro impresso; palavras e frases se fazem essenciais na medida em que incentivam a projeção mental de novas imagens. Esse apelo à imaginação se faz a partir de imagens que se apresentam de modo silencioso e cromaticamente econômico. As imagens preto-e-brancas do artista embaçam o nosso olhar e sugerem a ação do tempo como um ato de acúmulo empoeirado.

Recorrente à sua produção é o interesse pela criação de imagens que giram em torno de um espaço específico de habitação - como a sua casa ou os espaços de uma instituição. Paisagens domésticas surgem na forma das árvores ou do campo, mas também dos cantos das paredes descascadas dos cômodos que habita. O que potencializa esse interesse é a obsessão com que Ismael investiga esses ambientes sistematicamente. Mais do que criar imagens que embebem esses espaços de um olhar afetivo, o lugar que o artista ocupa em relação a eles é o de um pesquisador que opera entre um distanciamento frio e uma proximidade indissociável de seu corpo. Imagens, objetos e informações retirados desses lugares são apresentados de diferentes formas para o espectador que se vê perante um quebra-cabeça sem modo único de montagem.



Esta exposição advém desse modus operandi de seu processo criativo. Um dos interesses de Ismael (e também meu enquanto curador) ao iniciar uma pesquisa é compreender mais a respeito das histórias do espaço expositivo em que suas imagens serão mostradas. A surpresa ao cutucar a colmeia em torno da história da atual Portas Vilaseca Galeria foi grande e encontramos mais mel do que ferroadas. Antes de sua experiência atual com a exibição e comercialização de arte, a família Vilaseca possuía uma tradicional loja de molduras em Botafogo, fundada em 1970. Dentre seus célebres clientes estavam Clarice Lispector, Iberê Camargo e Di Cavalcanti. Entre 2000 e 2003, ampliando o escopo dos negócios, a família abriu uma loja de souvenires no Museu da República, no Catete, chamada “Le petit musée”. Após seu fechamento, abriram uma segunda unidade da molduraria no Leblon, espaço da atual galeria.

Ismael Monticelli desenvolveu uma pesquisa nos últimos meses dentro de um galpão no bairro de Bonsucesso que é tanto oficina de molduras, quanto depósito da família e seus empreendimentos. Caixas, sacolas e pilhas de objetos guardados há anos foram remexidos e organizados de acordo com suas diferentes utilidades descartadas. Após o embate diário com essas imagens, o artista resolveu propor três configurações diferentes para o material encontrado. Chamadas por “salas” e numeradas sequencialmente, as três diferentes exposições que serão apresentadas podem ser vistas também como capítulos do mesmo livro ou títulos de uma mesma trilogia.

Trata-se de um museu imaginário com três salas que fisicamente abrem suas portas no mesmo endereço, mas que poeticamente se sobrepõem progressivamente no tempo de um mesmo projeto curatorial. Os dados biográficos que são o ponto de partida dessas exposições são importantes, mas não a única trilha de leitura dessas obras. A narrativa familiar se potencializa na medida em que as questões levantadas nas mostras extravasam esse caráter biográfico e levam o público a refletir sobre o peso da matéria e do tempo quanto à imaginação em torno dos museus, das molduras e das lembrancinhas kitsch.



A SALA 1 de nosso pequeno museu coloca o espectador em um lugar diminuto perante o seu entorno. Mais de mil molduras encontradas no referido depósito são apoiadas contra a parede e criam um corredor de passagem para o público. Nossos corpos tem à frente um peso tanto escultórico, quanto histórico. Diferentes tipos de madeira e modos de confecção de molduras ficam à altura de nossos olhos e criam novas composições geométricas. Sem seus recheios, ou seja, sem suas pinturas centrais, as molduras acabam por emoldurar a si mesmas.

O caráter geométrico e o desejo de perfeição simétrica se desfazem aos poucos quando se percebe que os elementos que deveriam ser o entorno das imagens são, ao mesmo tempo, a frente e o fundo dessas camadas de objetos empoeirados. O personagem principal dessa sala é o vazio desses objetos que padecem de sua incompletude e nos lembram da garantia de fracasso inerente às tentativas de se institucionalizar algo. A moldura e o holofote lançado hoje, amanhã será esquecimento.





A SALA 2 se apresenta como a reunião de diferentes objetos que criam narrativas paralelas ao redor de um material específico encontrado no depósito: lembrancinhas de museu. Os souvenires ali pesquisados, porém, são feitos de diversas técnicas e possibilitavam ao comprador múltiplas utilidades. Essa diversidade é perceptível tanto na visualidade desses trabalhos, quanto em seus títulos: “Iberê Camargo/Mario Carneiro”, “Lygia Clark”, “Renoir”, “Picasso” e “Goya” dão uma amostra da clara predominância das tradições artísticas europeias em comparação ao menor desejo de perpetuação da memória de artistas brasileiros. Estes grandes mestres da pintura moderna ocidental – e não nos esqueçamos que hegemonicamente as narrativas da história da arte selecionaram quase sempre apenas os homens – seguem a ter presença maciça em qualquer tenda de museu.

Em diálogo com os chamados objets trouvés (objetos encontrados) explorados tanto por Marcel Duchamp, quanto por artistas de diferentes vanguardas históricas, Ismael cria objetos que contribuem com a reflexão do espectador a respeito deste imaginário em torno dos processos de institucionalização da arte. A repetição é um elemento central nessa sala; fazendo uma ponte com a primeira sala, peças de mostruário de moldura são unidas e se tornam totens de um estatuto da arte tão fragmentado quanto a certeza do reconhecimento futuro para um jovem artista. Estojos de plástico com um kitsch tom de vermelho estampam o sobrenome de Picasso, enquanto sacolinhas de tecido desgastadas pelo tempo traçam um paralelo cromático a partir do nome de Goya. O universo desses artistas é ecoado, então, pela presença da escrita de seus nomes e não pela citação às suas imagens.

O mesmo gesto opaco de estabelecer referências do campo da arte se faz presente quando o artista cria uma composição geométrica a partir de catálogos ainda embalados de Iberê Camargo e Mário Carneiro ou quando opta por mostrar os versos de cartões pop up sobre Renoir. Pôsteres dobrados e também corroídos pela má conservação impedem que o público leia suas referências e se tornam bandeiras de lugar nenhum. Pilhas de cartões postais mostram suas legendas, mas apenas o único encontrado no depósito que faz referência à Lygia Clark é escolhido para ter sua imagem compartilhada com o observador. Esconder a literalidade das imagens, portanto, é um mecanismo essencial da composição de imagens do artista, assim como esses souvenires estavam escondidos sob a poeira que os transformou em casa nos últimos anos.





A SALA 3 também traz ao público esse seu interesse entre revelar e ocultar as imagens. A última sala desse museu é composta por obras que foram entregues e nunca retiradas da molduraria. Algumas tiveram suas molduras atualizadas ou feitas pela primeira vez; outras sequer chegaram a ser reformadas. O esquecimento dessas pinturas, fotografias e desenhos leva a uma inevitável dúvida por parte do observador: quais razões levaram esses colecionadores e artistas a não reaverem esses objetos? Trata-se efetivamente de um esquecer ou do ato de se desfazer de imagens não mais desejadas que não fariam mais sentido para seus proprietários ou criadores? Poderíamos enxergar, então, o ato de entrega para criação de uma moldura como um ato de descarte?

Como nas outras salas compostas na exposição, a dúvida paira ao nosso olhar e reflexão. Ismael opta por, no lugar de criar uma exposição tradicional dentro dessa sala, convidar ao embate dado por diferentes camadas da experiência corporal. Mais do que pinturas que convidam o nosso olhar a um espaço bidimensional ficcional, essas imagens são objetos tridimensionais – coisas que foram entregues e guardadas dentro de um depósito. As imagens são mostradas nas paredes (e na sua relação habitual entre corpo e imagem à sua frente), mas também no chão, onde são criadas pequenas aglutinações entre suas formas tridimensionais. Nosso corpo, portanto, deve estar atento ao seu caminhar para não pisar e destruir esses objetos cujos referenciais de colecionismo e autoria por vezes já se perderam com o passar do tempo.

Essa perda da referência iconográfica se faz ainda mais clara quando o artista opta por mostrar todas essas peças embaladas em plástico-bolha. Utilizado tanto para transportar objetos frágeis, quanto para resguardar a integridade física de coisas guardadas, o plástico insere uma veladura a essas imagens e se apresenta como um dado tanto formal e cromático, quanto um material repleto de novas camadas de significados para a terceira sala. Cobrir com plástico-bolha é colocar as imagens em um espaço de suspensão, em um momento anterior ao da exposição e em uma espécie de não-lugar artístico. Os bastidores do processo de institucionalização vêm à tona e, na verdade, tomam o lugar da ficção do cubo branco.



Esse mecanismo me parece, portanto, algo que une as três salas criadas/curadas por Ismael Monticelli: seu olhar contorna os objetos e operações que juntos possibilitam a solidificação dos sistemas das artes visuais. Se começamos com as molduras, esses limites poligonais que estabelecem a fronteira entre o que é espaço expositivo e o que é imagem artística, agora ao fim terminamos com a presença efetiva das obras de arte. Esses objetos, porém, uma vez esquecidos, possuiriam o mesmo valor que aqueles outros que foram recolhidos na molduraria? Entre esses dois polos, os souvenires, objetos que não desejam ser alavancados ao estatuto da arte e que extraem sua existência justamente da construção romântica do gênio artístico – mas que, pelas mãos de Ismael, também foram agrupados, apropriados e agora institucionalizados como tal.

Fica a certeza, após percorrer e acompanhar a montagem e criação dessas três salas de Ismael Monticelli, que esse museu pode ser pequeno em seu título, mas que o seu processo criativo que envolve pesquisa, experimentação e reflexão filosófica é extenso, profundo e requer tempo. É sobre esse elemento último, tão precioso nos dias atuais e necessário para a criação e fruição do público, que esse projeto parece falar de modo insistente – o tempo dos objetos, o tempo das instituições e dos empreendimentos em torno das artes visuais e o tempo de entrega por parte do artista.


(texto curatorial dividido em três partes relativo à exposição "Le petit musée", de Ismael Monticelli, realizada na Portas Vilaseca Galeria, no Rio de Janeiro, entre 20 de setembro e 05 de novembro)

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