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Leonilson


[23 de dezembro de 2014]



Pelo período de três meses esteve aberta na Pinacoteca de São Paulo a exposição “Truth, fiction”, um recorte dentro da produção do artista brasileiro Leonilson e com curadoria de Adriano Pedrosa. Nascido em Fortaleza, em 1957, o artista já habitava São Paulo desde os quatro anos de idade. Posteriormente estudante de artes plásticas, é na década de 1980 que sua produção desponta o levando a, por exemplo, participar da célebre exposição realizada na Escola de Artes Visuais do Parque Lage, no Rio de Janeiro, em 1984, “Como vai você, geração 80?”e da edição de 1985 da Bienal de São Paulo.

Através dessa perspectiva, Leonilson tende a ser aproximado das características formais e temáticas da chamada produção artística da “geração 80”: a suposta centralidade da pintura, a vontade de experimentação em grandes dimensões e o protagonismo de temas que giram em torno da banalidade (ou do uso de materiais precários) tanto num sentido de cultura de massa, quanto numa potência biográfica e ficcional de algumas poéticas, pode ser encontrada em suas imagens e de outros artistas do mesmo recorte temporal. Como qualquer classificação e estilo artístico, porém, as obras escapam das vontades de enquadramento por parte de historiadores e críticos de arte, felizmente.



Falecido em 1993 devido a complicações da AIDS, alguns foram os pesquisadores que publicaram livros e organizaram exposições a fim de revisitar sua obra. Dentre as exposições itinerantes, merecem atenção as pesquisas de Lisette Lagnado (1995), Ricardo Resende, Renata Sant’Anna e Valquíria Prates (2007) e, mais recentemente, a exposição organizada por Bitu Cassundé (2011). A exposição referida na Pinacoteca, portanto, segue na trilha de proporcionar ao público o contato com a obra de Leonilson através de uma reunião concisa de obras que, mesmo que traga pontos em comum com exposições anteriores, nunca se dá do mesmo modo e oferece a oportunidade para que possamos seguir a tornar complexo o seu corpus de imagens.

“Truth, fiction” retira seu título de um desenho de 1990 intitulado “Favourite game”. O contorno de uma figura humana solitária ao centro de uma página de papel, mas desalinhado de seu centro, traz ao lado de suas pernas as palavras que nomeiam a exposição. De um lado, a verdade e toda as leituras possíveis de um diário a partir da produção de Leonilson; do outro, a outra face da moeda, a ficção inerente a qualquer dado que pretenda ser verdade. A produção do artista, portanto, nessa perspectiva pode ser vista em um movimento pendular entre documento e invenção, assim como toda autobiografia e, porque não, as narrativas historiográficas.



Se as palavras estão de frente e permitem ser lidas, o rosto dessa figura humana se encontra vazio – percebemos o órgão genital masculino dessa imagem (seria um autorretrato do artista?), mas esse rosto vazio nos permite colocar em seu lugar e tomarmos as histórias de Leonilson como nossas. Nesse sentido, a relação entre imagem e texto, que se torna um dado constante em sua trajetória desde o começo dos anos 1980, se faz importante como um ponto de contato entre público e obra. Os complexos trabalhos de Leonilson nos aproximam pela suposta simplicidade do traço, das composições e mesmo das frases escritas, mas tenho a impressão de que o observador treinado é ciente da dificuldade de se chegar em imagens que parecem tão concisas que fazem lembrar, por exemplo, da “nobre simplicidade e grandeza silenciosa” escritas pelo historiador alemão Johann Winckelmann para se referir à arte grega antiga.

Com enfoque específico em um arco temporal da “obra madura” de Leonilson,  considerada por um período entre 1987 e 1993, pensar em recortes conceituais tal qual feito pela curadoria me parece uma decisão inteligente. Não há necessidade, nessa perspectiva, de se acompanhar ano a ano de sua produção, como numa ansiedade de consulta tal qual por ficha catalográfica, mas sim de uma apreciação a partir de nuvens de trabalhos que formalmente e tematicamente se repetem, assim como alguns acontecimentos se dão mais de uma vez em nossas biografias. “Mapas”, “Matemática e geometria”, além de “Brancos” são alguns desses eixos temáticos que circunscrevem sua obra a partir de perspectivas que saem de certo lugar comum; e se, por exemplo, no lugar insistente de ler Leonilson pelo viés do diário, da sexualidade e de sua morte precoce, pensássemos sua produção em relação às latentes ideias de expressão e geometria da produção da chamada “geração 80”? E se o vazio deixasse de ser fundo de seus desenhos e virasse frente?



A série de pinturas realizada em 1991 e sobre a qual Adriano Pedrosa realizou uma conversa com o artista a ser publicada em breve chama a atenção. Do mesmo modo que é possível afastar facilmente Leonilson de um certo lugar comum da construção historiográfica da produção dos anos 80 através de seus desenhos, colagens e pequenas apropriações de objetos, essas pinturas já da década de 90 são capazes, novamente, de criar outro ponto de contato. Por fim, mostrar novamente ao público a extensa série de ilustrações que o artista fez para uma coluna do jornal Folha de São Paulo, entre 1991 e 1993, endossa a importância e necessidade de que os historiadores da arte comecem a lançar luz e destrinchem nossa produção dos anos 1980.

Até que ponto o uso do termo “Geração 80” não se dá como fruto tardio de uma história da arte estilística e, muitas vezes, formalista? Qual a relação entre essa produção e os meios de cultura de massa, tal qual a produção de Leonilson aponta? O era produzido em outras regiões do Brasil além do eixo Rio-São Paulo nesse recorte? É por suas imagens e por sua capacidade de levantar essas e outras questões (artísticas e historiográficas) que a produção de Leonilson mereceu tantas exposições monográficas e, certamente, ainda será capaz de suscitar novos debates.




(texto publicado originalmente na ArtNexus de dezembro/2014-fevereiro/2015)
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