"Losing my religion"
[11 de outubro de 2008]
Tive o prazer de assistir a “Ensaio sobre a cegueira” (“Blindness”, 2008, dirigido por Fernando Meirelles) em um ambiente que me leva ao oposto: um vulgar cinema de shopping, precisamente o que se encontra no megalomaníaco Shopping Parque Dom Pedro, em Campinas. Partindo de sua fama, “maior shopping center da América Latina”, não é preciso muito esforço para imaginar o número de estímulos audiovisuais aos quais também estamos expostos circulando seja por seus corredores, seja pelo seu enorme estacionamento.
Foi neste percurso, entre as lojas e o meu ponto de ônibus, ao passar em frente a uma das boates que existem no lugar, que pude ouvir alguns versos da música composta e cantada pelo R.E.M., “Losing my religion” (1991, do álbum “Out of time”). Estes dialogavam de forma precisa com o filme recém-assistido. Além disso, em um momento breve de brainstorm, cogitei ainda ampliar estas relações em conjunto com outro filme lançado neste ano e cuja temática tangencia algumas questões abordadas pelo filme de Meirelles – “Wall-E” (2008, dirigido por Andrew Stanton). Para realizar estes breves cruzamentos entre diferentes mídias, tomemos algumas das palavras cantadas por Michael Stipe & cia:
That´s me in the corner
That´s me in the spot light
Losing my religion
Trying to keep up with you
And I don´t know if I can do it
Oh, no, I´ve said too much
I haven´t said enough
A problematização da rotina parece constante aos dois filmes. Em “Wall-E”, o personagem-título está responsável por organizar o lixo que restou de nosso planeta, de forma mecânica, porém sensível, percebida, por exemplo, no reaproveitamento de objetos que ele encontra em seu trabalho. Há um processo de curadoria, uma seleção que o pequeno robô faz dentro do lixo; algumas coisas precisam ser recicladas, outras, permeadas pela presença da memória e afeto de outrem – um cubo mágico, um filme, uma música – merecem permanecer em seu pequeno museu-casa. Por outro lado, o dia-a-dia demonstrado em “Ensaio sobre a cegueira” assemelha-se ao do espectador: refeições, engarrafamentos, idas à farmácia. Especial atenção é dada à tentativa de diálogo entre os casados personagens de Julianne Moore e Mark Ruffalo. Enquanto o oftalmologista foca suas falas em seu relatório profissional diário, a outra se encontra mais preocupada em servir o jantar e esclarecer a terminologia correta do prato que cozinhou. Se o robô parece ficar à margem (“in the corner”, como diz o R.E.M.) das paisagens em ruínas que circula, levando a crítica de cinema a tomá-lo como um personagem solitário, a mulher do outro filme segue no seu papel de dona-de-casa, cozinhando para seu marido, e explicitando os tempos diferentes dos personagens. Temos aí os momentos de constatação de suas rotinas.
Rapidamente, porém, estes saltam para o holofote de suas tramas. A cegueira é apresentada como o ato primeiro do filme de Fernando Meirelles. Ela ganha uma outra dimensão quando atinge, ironicamente, o oftalmologista, fazendo que a personagem de Moore ganhe uma dimensão maior, inverta papéis e chegue mesmo a tentar examinar a visão de seu marido. Na animação da Pixar, a visita do robô Eva, de nome sugestivo e sexo feminino, em busca de vida vegetal no que restou da Terra, abre um novo leque de possibilidades para o olhar de Wall-E. É claro que, comparando as duas obras, podemos afirmar que o personagem robótico é dotado de destaque desde o início de suas aparições, inclusive pelo título do filme. Por outro lado, seu comportamento transparece uma certa passividade perante sua existência, tendo como única exceção suas mini-curadorias supracitadas. A constatação de existência de um ser de sua mesma “espécie”, ou seja, outra aparelhagem eletrônica (diferente da barata com quem contracena em poucos momentos), faz com que o personagem principal ative a sua vida. Poderíamos ler estes momentos dos filmes como a reconstrução das rotinas.
É neste viés que podemos ter como auxiliador desta leitura o “trying to keep an eye on you” de “Losing my religion”. Os dois personagens tornam-se os olhos de suas tramas. Wall-E, imerso em sentimentos novos e endereçados a Eva, deixa a Terra e, mesmo em desvantagem tecnológica, através da contraposição antigo/moderno entre si mesmo e a outra, faz de tudo para “manter um olho” nela. Tal atitude é permeada por tanto esforço que se torna recíproca. Em “Ensaio sobre a cegueira”, a mulher torna-se não apenas os olhos de seu marido, mas de um extenso grupo de cegos. Se no começo da trama ainda existe espaço para a esperança, com a criação de mais alas de internos e com a série de problemas relativos à alimentação dos mesmos, a personagem vai perdendo sua fé, “losing her religion”. Esses momentos de melancolia ou de uma saudade de um estado anterior, no caso do filme de Meirelles, ou da saudade do outro antes desconhecido, no caso da animação, é traduzido através de planos em que encontramos o olhar perdido e o isolamento dos personagens.
Como o diretor brasileiro afirmou em entrevista, uma das referências plásticas para seu filme é a obra de Lucian Freud, pintor alemão, neto do psicanalista. Poderíamos estender essa leitura mesmo para outra relação possível com a poética do pintor norte-americano Edward Hopper. Enquanto na adaptação de Garcia Márquez constatamos uma decorrência maior da figura humana, através da fisicalidade dos atores e de enquadramentos mais fechados, dialogando diretamente com o universo proposto por Freud, a plasticidade de uma urbs cinzenta e fantasmática de Hopper, em que as figuras humanas parecem manequins, seria uma outra conexão possível. Essa leitura fica mais rica no confronto entre “Wall-E” e as obras do pintor americano; é como se o seu universo visual, no que diz respeito ao destaque da paisagem e no automatismo de expressão dos homens ilustrados, fosse um estágio futuro do problema já anunciado por Hopper.
Seguindo em nossa leitura via R.E.M., os personagens principais do filme “não sabem se conseguirão fazê-lo”; será possível manter os olhos de forma eficiente sobre os outros? As duas obras parecem responder positivamente a esta questão, mas em direções opostas. No filme da Pixar, iniciamos nossa trajetória através de um ambiente abandonado, que será modificado devido à força de vontade de nosso carismático robozinho. Ao contrário, no filme de Meirelles, começamos do estado de megalópole em que estamos, rumo ao caos total e, nos últimos minutos, curtas gotas de adoçante são jogadas na tela.
Mas qual o sabor que fica em nossos olhos ao fim destes filmes? Devemos realmente acreditar que o final de “Wall-E” é esperançoso? Não poderia ele ser interpretado como um círculo vicioso de destruir, recuperar e, quiçá, destruir novamente? Em “Ensaio sobre a cegueira” o caso parece ser ainda mais grave. A possibilidade de voltar a enxergar está longe de ser algo positivo, já que os intercâmbios entre os humanos apenas se deram devido à cegueira. Ver, portanto, será o mesmo que cegar e vice-versa.
É no território das incertezas, proporcionadas pela potência das imagens e sons apresentados nestes dois filmes, que poderíamos seguir na leitura de suas representações de catástrofes, tanto no campo global, quanto no campo do micro, da relação inter-humana. Talvez seja válido recorrermos, de forma interrogativa, à frase final de “Losing my religion”: “That was just a dream, just a dream, just a dream, dream?”.
(texto publicado originalmente na RUA - Revista Universitária do Audiovisual em outubro de 2008)