Maria
[18 de julho de 2012]
Um vestido azul ganha destaque perspectiva afora, em direção a uma câmera de vídeo. Os sons de um sino de vaca anunciam, em verdade, a presença humana. Uma dama de azul conversa com o homem com a câmera. Um "bom dia" se transforma na busca pelo seu nome próprio e dessa pequena investigação, um elogio se transforma em um problema: "gostei muito da sua roupa" é elevada ao nível de um leve embate sobre teoria do retrato. A retratada afirma que aquela não é uma "roupa para tirar retrato" e com isso coloca em xeque a falsa espontaneidade de qualquer objeto da retratística. Todo retrato é uma apresentação que passa por uma negociação entre o pêndulo que o causa, ou seja, aquele que mira o olhar e aquele que tem seu espírito roubado e apropriado pelo outro.
O ponto de interesse, talvez, deste curta-metragem está justamente na resposta oral e rasteira desta humilde senhora; as lentes do homem de São Paulo puderam capturá-la em seu caminhar diário e mesmo transformar este encontro em cinema institucionalizado em festivais, mas ao mesmo tempo ela foi capaz de verbalizar sua discordância. Não, não trajava uma roupa "limpa e passada", como aquelas que julgava serem as ideais para um retrato. Em dado momento, diz "roupa para tirar retrato não é assim não, mas se quer tirar, tire", ou seja: visto que você tem essa arma mais forte do que eu, a câmera de vídeo, faça o que bem entender dela.
Não satisfeita em explicitar o domínio da técnica em contraposição à sua própria vontade, a retratada inverte a hierarquia da retratística e dispara diversas perguntas àqueles que filmam: de onde eles são? São casados? Por fim, elogia a beleza de todos eles e deseja que sigam com Deus. A relação de poder aqui é percebida, escancarada e mesmo ironizada por esta inteligente senhora. Seus verbos proferidos nos deixam curiosos, visto que, diferente de algumas pinturas do Renascimento, não há aqui um espelho dentro do quadro que possa mostrar também a face daqueles que retratam.
Com que roupa iríamos ali ao lado, como ela diz, visitar uma amiga? Quais os limites entre diálogo e vigilância através do vídeo? Quais novos códigos de ética e estética perpassam a relação que o homem contemporâneo criou entre a câmera de vídeo, a alteridade cultural e a rápida disseminação possibilitada por um circuito de divulgação audiovisual? Num segundo momento, quais diferenças surgem quando se disponibiliza esse encontro num campo virtual público e Maria é, além de uma habitante de Exu, em Pernambuco, objeto de um texto como este?
(texto publicado originalmente na Revista Contemporartes em 17 de julho de 2012)