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Meu mundo é hoje


Sonia Gomes
[07 de agosto de 2018]



Ateliê-casa

Ao folhear o catálogo da primeira exposição de Sonia Gomes em Belo Horizonte [i]Objetos, realizada no antiquário Sandra & Márcio em 2004 –, chama atenção a sequência de fotografias. A imagem inaugural é de uma porta, os contornos dos trincos e da fechadura surgem realçados por grossas linhas; vemos também um molho de chaves, conectado por uma linha azul a esses diferentes elementos, que se apresentam como uma abstrata composição. A segunda fotografia traz um ângulo curioso em que o corpo humano se faz presente: os pés da artista capturados em close, denunciam suas pernas cruzadas. Ela usa tênis vermelhos, sobre o chão de madeira. Um novelo de linha segue perna acima, e notamos sua mão repousar sobre a coxa. Na parede ao fundo aparece uma obra – pontos assimétricos de costura se misturam a coloridos retalhos –, trata-se de Pano (2004).

Se passamos as páginas até o final da publicação, notamos um discreto, mas coeso discurso editorial em que fotos de obras são ladeadas a detalhes do espaço doméstico da artista: trabalho em renda bordada sobre uma cama, espelho do banheiro com bordas preenchidas com tecido; uma mesa com um monitor de um computador com capa feita da junção de vários retalhos; banco de madeira coberto por linhas e tecidos, na cozinha. Entre as imagens finais há um colar disposto em um manequim e, na última fotografia, um pingente em formato de cruz que é usado pela artista.

Iniciamos esse percurso com a porta, que divide os ambientes de uma casa e diferencia o espaço privado do público; avistamos o corpo da artista; depois perpassamos os cômodos e terminamos, novamente, com a imagem de seu corpo. A sequência fotográfica aponta aspectos essenciais da pesquisa de Sonia Gomes: a fusão entre espaço residencial e ateliê, a relação entre a escala de seu corpo e o tamanho dos seus trabalhos, a mundanidade dos materiais utilizados, que se aglutinam sobre objetos utilitários em contraste com sua exibição em espaços de cubo branco. [ii]

Treze anos separam esta publicação da realizada pela editora Cobogó no ano passado – ambas com imagens do ateliê da artista. Agora não é mais o espaço que, em 2004, Gomes também habitava, mas, sim, uma sala comercial alugada no centro de Belo Horizonte, exclusiva para sua prática artística. No material lançado em 2017, as fotografias mostram esse espaço que agora é apenas ateliê em ângulos mais abertos; saem de cena os closes de parte dos cômodos e chega ao público um olhar interessado na relação proporcional entre arquitetura e objeto.

Uma fotografia é, em especial, é interessante. O enquadramento de todo o ateliê de Sonia Gomes, visto de um modo perspectivado. Em uma mesa próxima da câmera, há livros e cadernos com suas capas ocupadas por costuras da artista; pelas paredes, vemos telas de metal que servem como estrutura expositiva, em que algumas obras recém-concluídas são testadas. Máquinas de costura habitam o espaço e, mais ao fundo, próximo ao teto, várias caixas e sacolas plásticas anunciam possíveis materiais guardados, à mão de serem acrescidos às peças a qualquer momento.

Ao observar essa imagem, o leitor do livro testemunha que a pesquisa de Gomes se movimenta de maneira orgânica das mesas às paredes e destas até o teto; o leque de opções plásticas é grande, e a movimentação das peças não se faz dificultosa. Como diria José Alberto Nemer, o artista mineiro que assina o primeiro texto a respeito da artista no catálogo de 2004, “o vigor com que Sonia Gomes espalha sua inquietação criativa por onde vive lembra as lições dos mestres do plasticismo abstrato, como Piet Mondrian afirmando que a arte só encontraria sua plenitude quando invadisse a vida”. [iii]



Se a aproximação com Mondrian (1872-1944) soa exagerada, é notável que Nemer tenha percebido a importância do espaço casa-ateliê para a investigação de Gomes – algo latente no apartamento em que agora vive em São Paulo, cidade que a “chamava” há algum tempo. [iv] Assim como no começo de sua carreira, espaço doméstico e de trabalho se fundiram em um único lugar. Basta olhar o centro de sua sala para perceber tanto uma elegante ausência de espaços vazios nas paredes – nunca se trata de um horror vacui literal –, quanto o uso, novamente, de elementos como bancos, cama e até mesmo uma tábua de passar. As telas de aço seguem ali, mas são esses objetos estranhos e em metamorfose, dispostos sobre móveis ou presos diretamente às paredes brancas que se destacam, e nos ensinam a respeito de certa sobrevida fantástica das coisas que nos rodeiam.

Conhecer o espaço privado de moradia e criação – seja pelas fotos, seja fisicamente – faz com que olhemos a produção de Sonia Gomes de outra maneira. Há uma diferença perceptível entre o modo como o seu trabalho pode ser observado em espaços de cubo branco criados para exposições de artes visuais e aqueles lugares que trazem elementos arquitetônicos de seu uso prévio.



Mergulho na secularidade [v]
Em sua primeira individual – Risco do tempo, em 2012, na galeria Mendes Wood DM, em São Paulo –, havia uma área em que o público podia ver as obras Cadeira (2009) e Banco (2008), uma em frente à outra, tal como em um espaço doméstico. Ao montar as obras dessa maneira, era anunciada a estima da artista por ideias de conforto e intimidade. Ao fazê-lo dentro de uma expografia entregue à tradição moderna dos cubos brancos, os objetos têm os aspectos formais, escultóricos e arquitetônicos destacados em sua relação com o espaço.[vi] Essa impressão é realçada não só pela forma como as peças eram mostradas, mas pelo aspecto clean de toda a exposição, em que as obras estavam cercadas pelo branco das paredes, pela luz natural que entrava pelo vidro da galeria e por seu piso de madeira.

Ao observamos imagens das exposições das quais Sonia Gomes participou, veremos que a maior parte das espacializações de sua obra se dá de forma semelhante, levando nosso olhar a fruir sua produção como obras abstratas que parecem possuir interesse formal – o que é trabalho físico e concentração pode ser interpretado como convite exclusivo à busca pela beleza plástica. O que dentro de sua casa poderia ser enxergado como um site specific, nesse trânsito entre espaços é transformado em objeto. Tal maneira de exibir o trabalho da artista certamente não é um problema, em especial quanto às mostras em galerias comerciais, mas parece reter algo do caráter processual, frágil, mundano e experimental de sua pesquisa.

Destacam-se, portanto, os momentos em que sua obra é instalada em espaços contaminados por informações visuais e arquitetônicas contrastantes. É aí que a relação da artista com a reinvenção da forma, da matéria e de si mesma é potencializada; da mesma maneira que a artista se apropria de tecidos, roupas e retalhos de segunda geração comprados em brechós ou doados, nessas exposições ela também parece se apropriar do peso temporal dos lugares ocupados. Mostrar um trabalho, portanto, se torna experimento sem certo ou errado em que se dispõem temporariamente imagens em um espaço. Essa efemeridade é força motora, e os espaços não assépticos são aqueles em que essa potência se apresenta.



Um bom exemplo é o trabalho apresentado pela artista na galeria Hauser Wirth & Schimmel, em Los Angeles, Estados Unidos, no contexto da exposição coletiva Revolution in the Making: Abstract Sculpture by Women, 1947-2016 [Revolução no fazer: escultura abstrata por mulheres, 1947-2016]. O prédio havia sido um moinho de farinha ativo entre o final do século 19 e o começo do 20, com seu interior permeado por elementos arquitetônicos e cromáticos de diferentes pontos da história. O encontro entre uma arquitetura como essa e a pesquisa de Sonia Gomes é um diálogo entre duas temporalidades – a do prédio e a dos tecidos costurados pela artista. Não à toa, a instalação apresentada sugeria a relação entre os trabalhos e o corpo humano, em uma ocupação que se espalhava por teto, chão e paredes.

Soluções plásticas semelhantes puderam ser vistas na participação da artista na Bienal de Veneza, em 2015. Tomando parte do Arsenale – antigo estaleiro e arsenal para armas da cidade –, alguns dos trabalhos torcidos de Sonia subiam pelas colunas e, outra vez, convidavam o corpo do espectador a ser ativo perante sua disposição espacial. No que diz respeito à instalação apresentada no Videobrasil em 2015, a artista fez experimentos a partir da junção de dezenas de suas torções, que estiveram em um largo e alto painel no SESC Pompéia. A monumentalidade da instalação era desfeita pelos vazios entre as peças, que nos recordavam de sua fragilidade. [vii]



Essas montagens proporcionam, usando um termo dito pela artista, o encontro entre “pátinas do tempo”. [viii] Os frutos de sua casa encontram um local que difere da tendência à neutralidade e à domesticação dos cubos brancos; é nos espaços ligeiramente arruinados que a dramaticidade silenciosa de sua obra sussurra aos nossos ouvidos e percebemos a organicidade entre a ocupação arquitetônica e as suas peças – assim como aquelas fotografias de seus ateliês-casa indicavam. É preciso, portanto, mergulhar na secularidade de suas imagens.


A casa e o corpo

Ao observar os títulos de seus trabalhos, esbarramos por diversas vezes em palavras que remetem a um universo de intimidade, acolhimento e moradia: Casulo(2006), Lugar (data) e Colmeia (2004) são obras que trazem esse campo semântico. Quando observamos sua produção de maneira cronológica, podemos notar interseção entre a casa e o corpo desde seus primeiros trabalhos.

Algumas das experiências plásticas iniciais de Sonia Gomes foram com a confecção de anéis, colares e pingentes. A maneira de construir tais utensílios era semelhante ao modo como até hoje ela faz seus objetos para exposições: inexiste um projeto prévio e, como ela gosta de dizer, é necessário “escutar” os materiais e entender de forma paciente o que eles desejam. Uma vez que o diálogo com os tecidos é estabelecido, o jeito de unir as peças vem à sua cabeça, e o corpo precisa agir para juntá-los. Distante do preciosismo e da limpeza visual de uma costureira modista, as mãos da artista fazem pequenas cirurgias e atam texturas, tamanhos e campos cromáticos. Os pontos costurados variam de tipo e se tornam elemento estrutural para as obras ganharem corpo.

As peças feitas para as mãos e os pescoços causavam estranhamento ao público de Belo Horizonte; posteriormente, a artista começa a se dedicar à fabricação de bolsas compostas da mesma maneira. Há algo de intrigante quando pensamos na bolsa para além de sua decoração exterior, trata-se de um artigo feito para carregar coisas; ou seja, possui uma arquitetura interior que se relaciona tanto com acolhimento quanto com translado.



Paralelamente às bolsas, a artista realiza suas primeiras experimentações com a apropriação de objetos. Seu olhar se atrai pelas gaiolas, o que a leva à realização de Depurar (1999). Semelhante às bolsas quanto ao gesto de acolher e transportar, as gaiolas apontam para algo drasticamente diferente – o cerceamento da liberdade. Assim como Aracne em seu destino mitológico, Sonia Gomes tece sobre esse trabalho de parede uma espécie de cacho enredado na parte inferior, que sustenta uma sacola de botões e outros pequenos itens. Entreaberta, a gaiola também tem sua parte de cima costurada a diferentes texturas de linhas e tecidos.

Há já nessa obra um elemento formal constante na produção da artista: nossa incapacidade de dar conta de todos os detalhes apresentados. Ao observar a produção de Gomes, estamos diante de peças que não parecem ter começo nem fim, frente ou verso; inexiste simetria ou relações de peso e cor que tragam em si uma regra para sua fruição. Começamos em um ponto, percorremos uma área de sua obra, rapidamente somos levados a outro elemento, e assim sucessivamente. Não se trata, por certo, de uma pesquisa formalista que está pautada em fórmulas pré-definidas. Mesmo que seja possível notar linhas de força em sua investigação, cada obra alude à experiência particular de adição de partes que não se replicarão de maneira parecida nenhuma outra vez.

Quando colocamos suas obras-gaiola [ix] ao lado de outros trabalhos que remetem a noções de acolhimento, como Colmeia, Casulo, Banco e Cadeira, torna-se palpável outro aspecto formal e existencial da artista: a reunião das diferenças. Não há em sua poética uma hierarquia entre os materiais; qualquer tecido, do mais ao menos caro, do melhor estado de conservação ao pior, será engendrado em uma cadeia de relações que se sustenta. Dentro de sua colmeia, todas as abelhas são importantes. Não há protagonismo para a abelha-rainha, mas, sim, uma dispersão de elementos visuais que denotam um trabalho construído dia a dia, detalhe a detalhe.

A equação entre a casa e o corpo também se faz presente, de outro modo, em Maria dos Anjos(2018), um de seus trabalhos mais recentes. Obra comissionada pela 11ª Bienal do Mercosul, a instalação teve o processo de criação iniciado com um vestido de casamento doado à artista – por uma senhora que Gomes descobriu se chamar Maria dos Anjos. Essa obra contrasta com seu percurso devido à monocromia; o vestido foi aberto pela artista e a presença cromática se dá sobretudo pelos pontos pretos que contornam a forma orgânica da roupa. O fato de ser um vestido usado no ritual do casamento nos traz novamente à esfera do espaço privado e doméstico. A cerimônia, porém, não é celebrada na imagem criada pela artista, ela é dissecada e transformada em outra coisa. Como de costume, estamos perante um processo de nascimento. [x]



Sua mais recente série de trabalhos, a ser apresentada pela primeira vez no Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand (MASP), se intitula Raízes (2018). Com pedaços de madeira colocados diretamente no chão, essas obras dão prosseguimento ao seu interesse pela apropriação de objetos. Galhos e troncos de árvores são apresentados de maneira crua, sem alterações em seu estado natural, e, assim, sua matéria se torna a base para que linhas e tecidos amarrados pela artista se transformem em um ecossistema fictício. Seu título trata não só da matéria arbórea que possibilitou esses elementos, mas faz também uma indagação existencial sobre a humanidade – quais são nossas origens? O que consideramos ser raiz e o que consideramos ser erva daninha? Tais divisões cabem na formação de um indivíduo?



As respostas variam para cada leitor. No que diz respeito às raízes da própria Sonia Gomes, diversos autores já exploraram as relações entre seus trabalhos e sua trajetória biográfica. [xi] Sem querer, porém, limitar a leitura da obra pelo espelho de sua vida, ou mesmo correr o risco de exotizar seu percurso singular dentro do sistema branco, patriarcal, masculino e elitista das artes visuais no Brasil, opto por me deter às suas imagens. A partir delas, penso que as raízes da poética de Sonia Gomes estão baseadas na equação entre seu corpo e o ateliê em troca física e simbólica com o corpo do espectador e os espaços que abrigam os seus casulos, colmeias, gaiolas e móveis.
 

Vizinhanças

A institucionalização do trabalho de Sonia Gomes se deve – indo além da potência de sua pesquisa – a uma crescente atenção dada a mulheres artistas por parte do mercado de arte e de grandes exposições com viés internacional. Mais do que isso, é inegável que nos últimos anos se observa um reconhecimento dado especificamente a mulheres artistas que lidam com a materialidade têxtil.

Entangled: Threads and Making [Emaranhados: as linhas e o fazer] (2017), realizada na Turner Contemporary e curada por Karen Wright, em Londres, Reino Unido, foi um projeto curatorial que girou em torno de quarenta artistas do século 20 de diferentes pontos do mundo que tinham a costura, os tecidos e a tapeçaria como matéria de investigação. Sonia Gomes era uma delas, e não só participou dessa exposição como também esteve nas mostras Art & Textile – Fabric as Material and Concept in Modern Art [Arte e têxtil – Tecido como material e conceito na arte moderna] (2013, Kunstmuseum Wolfsburg, Alemanha) e Out of Fashion – Textile in International Contemporary Art [Fora da moda – Tecido na arte contemporânea internacional] (2013, Museu de Arte Moderna de Alboorg, Dinamarca), além da supracitada mostra na Hauser Wirth & Schimmel, que também dedicava uma área aos têxteis.

Esse boom no interesse por nomes já históricos e outros mais jovens que desenvolvem suas pesquisas tendo as linhas como elemento primário de trabalho levou a curadora Christine Macel, responsável pela Bienal de Veneza de 2017, a reunir diversos deles em sua curadoria Viva arte viva[xii] Do Brasil, Ernesto Neto foi convidado para apresentar uma grande instalação feita de malha. De onde viria esse fascínio por parte de curadores, mercado e, claro, artistas visuais? As dúvidas necessitariam uma pesquisa mais profunda, mas gosto de pensar conjuntamente à pesquisadora Kirsty Bell:

[Sobre o fascínio pelo têxtil evocado por este autor] “É em razão do atual desânimo por nossa crescente confiança em ferramentas tecnológicas e experiências em tela? Os prazeres táteis por meio de roupas e fibras fornecem um antídoto para a falta de estímulos hápticos em uma realidade cada vez mais digitalizada e saturada de imagens?” [xiii]

Voltando liricamente às noções de casa e residência, gostaria de propor algumas vizinhanças poéticas para o caminho de Sonia Gomes. Poucos são os textos que relacionam sua obra a de outros artistas baseados no Brasil e, por mais que Gomes afirme que sua produção não se iniciou devido a correspondências externas – mas, sim, à necessidade interna de criar imagens para o mundo –, é certo que seu trabalho e sua circulação comercial e institucional possibilitam apontar pares na produção de arte no presente. Não se trata de uma leitura nacionalista de sua obra, é o apontamento de constelações de artistas brasileiros que também não fogem à criação em torno dos cortes e costuras.

Um dos primeiros nomes aproximados ao trabalho da artista foi Arthur Bispo do Rosário (1909-1989), chegando mesmo a recair sobre ela o apelido “Bispo de saias”. [xiv] Como a própria artista pontuou, talvez as associações se deem mais pelo caráter supostamente intuitivo dos dois nos processos criativos – além da negritude em comum – do que pela proximidade formal. É certo que, ao observar os retalhos costurados por Bispo do Rosário, podemos recordar algo da maneira como Sonia Gomes opera com suas cores e texturas; um segundo olhar, porém, revela suas diferenças. Para mais de ter uma relação forte com a imitação de objetos utilitários, Bispo do Rosário se utiliza da escrita com frequência, trazendo mensagens e listas. Essas duas opções plástico-poéticas contrastam com o assumido caráter abstrato e silencioso de objetos e instalações de Sonia Gomes.

Podemos aproximar a poética de Gomes a de outras artistas mulheres, não necessariamente de sua geração. Gosto de pensar seus objetos em diálogo com os Trepantes (1964-65) de Lygia Clark (1920-1988), em especial a sua subsérie de borracha Obra mole (1964). Os materiais usados pelas duas artistas são bem diferentes, porém há algo comum na maestria com que ambas utilizam os espaços vazios, que surgem dos recortes de suas formas orgânicas, criando um diálogo trans-histórico singular.



Há muitas artistas que utilizam materiais semelhantes em pesquisas já solidificadas. Poderíamos nos lembrar, tal qual uma lista, dos objetos feitos por Maria Nepomuceno com corda, conta e cerâmica; de Leda Catunda e sua criação de estampas com perspectiva bem-humorada e pop; de Laura Lima e o uso dos tecidos e outras superfícies moles para a construção de objetos cujas formas são escondidas e esculpidas pelos panos; ou de Solange Pessoa, artista também de Belo Horizonte, cuja fatura cromática relacionada à terra é detentora de grande peso visual. Poderíamos também lançar nosso olhar para uma série de artistas mais jovens, com uma institucionalização que se inicia na presente década e de quem os objetos escultóricos moles se destacam – como Daniel Albuquerque, Paloma Bosquê e Randolpho Lamonier.

Há ainda dois artistas que me parecem ser os vizinhos mais próximos da trajetória de Sonia Gomes. Ambos lidam com a abstração por meio do uso de tecidos, sempre com uma carga dramática comedida e talvez dominada pelo mistério das composições. Com um interesse cromático sóbrio, devido à organicidade e escala contida, as obras de Eliane Duarte (1943-2006) podem ser relacionadas às de Gomes. De caráter mais expressivo – especialmente devido às cores que variam entre o preto, o cinza e o marrom –, seus trabalhos ocupam o espaço de modo discreto e pontual, de forma que criariam uma interessante conversa com os objetos da outra artista. Infelizmente, Duarte faleceu quando seu trabalho estava em plena ascensão de reconhecimento e segue por ser investigado, catalogado e exposto.

Também do Rio de Janeiro e de uma geração jovem que pouco a pouco ganha espaço institucional, merece destaque a pesquisa de Arthur Chaves. Com uma prática inicia na pintura, o artista tem trabalhado nos últimos anos com composições baseadas em tecidos e intervenções diretas sobre a superfície deles. A escala de sua produção costuma variar de média a grande, embora as opções referentes aos tecidos que utiliza e a nuvem de imagens por eles criada esteja mais próxima do silêncio do que de um grito. Costurar, pintar, prender, segmentar a matéria – ações de Chaves que geram recortes em seus objetos de parede e os impregnam de uma forte ocupação espacial, que, por meio da economia de elementos, compõem outro diálogo fecundo com a poética de Gomes.




Meu mundo é hoje

Recentemente tive a oportunidade de realizar uma longa conversa com Sonia Gomes junto de Amanda Carneiro, curadora de sua exposição individual no MASP. Foram três horas de troca, em que partimos de aspectos de sua obra, dos seus processos criativos; e, inevitavelmente, falamos sobre sua vida, viagens e descobertas. Ao fundo, para não transformar o encontro em uma entrevista seca e insossa, caixas de som entoavam uma seleção de sambas tocados apenas instrumentalmente, escolhidos pela artista.

Como ela mesma disse, sua vida nos últimos anos tem sido baseada em “um susto a cada dia”, tamanha é a atenção que recebe de diferentes agentes das artes visuais. Muitas foram as ideias discorridas por Gomes, mas uma das mais constantes era a respeito da necessidade existencial de fazer coisas que apenas posteriormente foram chamadas de arte. Sua fala versou muito sobre a imanência de seu trabalho; não há nenhum discurso romântico quanto à sua produção, que mistura olhar, fisicalidade e experiência de viver uma jornada após a outra. Não há também anseio pela monumentalidade, pela produção em ritmo industrial e pelo desejo de ter uma agenda lotada de exposições, falas ou qualquer compromisso público. A artista vive um momento de cada vez, e tem os dois pés plantados no presente; como disse na entrevista aqui citada, o seu tempo é o agora.

Aprecio relacionar sua obra e trajetória com os versos cantados, também de forma tranquila, por Paulinho da Viola em “Meu mundo é hoje” (incluída no álbum Dança da solidão, de 1972), composição de José Batista e Wilson Batista. Apenas estando de corpo inteiro no presente se faz possível articular de tantas maneiras os retalhos de diferentes passados, conforme proposto pela artista. Seu merecido e inesperado reconhecimento enfim chega à sua vida, mas este, como tudo, é efêmero; é apenas mais um estímulo sua produção seguir de acordo com seu ritmo e simplicidade – modo pelo qual Paulinho da Viola optou ter sua voz, acompanhada apenas por violão, caixa de fósforos e flauta.

Nós, como público, aguardamos os novos desdobramentos, cortes e pontos de costura de materiais e narrativas proporcionados por suas mãos. Nós, como pesquisadores, curadores e historiadores da arte, seguimos no desafio de pensar diferentes ziguezagues poéticos entre a casa de Sonia Gomes e outras casas ou ateliês de artistas ativos em diferentes temporalidades e lugares do mundo.

[i] Sua primeira exposição como artista visual ocorreu em 1994, na Casa de Cultura de Sete Lagoas e foi intitulada “Pinturas”.
[ii] Esse último aspecto parece ainda mais realçado na medida em que as fotos dos mesmos objetos de Sonia Gomes são fotografados tanto sobre um suposto fundo neutro e branco quanto, em outros momentos – como no caso do já citado “Pano” (2004) - são registrados dispostos em sua casa.
[iii] NEMER, José Alberto. “Objetos” in Catálogo da exposição “Objetos”, realizada no antiquário Sandra & Márcio, em 2004.
[iv] “... São Paulo estava me chamando há muito tempo, e resolvi atender ao chamado. E acho que agora ela me abraçou. Gosto da cidade grande. E necessito de vida, por isso vim para São Paulo. E precisava ser um lugar, com cachorro na rua, gente, comércio popular, tudo” in PINTO, Ana Estela de Sousa. “‘A artista é mulher e negra, mas a arte é arte’, diz Sonia Gomes” in Folha de São Paulo. 19 de dezembro de 2017. [https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2017/12/1944244-a-artista-e-mulher-e-negra-mas-arte-e-arte-diz-sonia-gomes.shtml]. Acesso em 07 de agosto de 2018.
[v] Esse subtítulo é retirado de uma frase de Brian O’Doherty em seu “No interior do cubo branco” e está citado em sua íntegra na próxima nota de rodapé.
[vi] “A galeria ideal subtrai da obra de arte todos os indícios que interfiram no fato de que ela é ‘arte’. A obra é isolada de tudo o que possa prejudicar sua apreciação de si mesma. Isso dá ao recinto uma presença característica de outros espaços onde as convenções são preservadas pela repetição de um sistema fechado de valores. Um pouco da santidade da igreja, da formalidade do tribunal, da mística do laboratório de experimentos junta-se a um projeto chique para produzir uma câmara de estética única. Dentro dessa câmara, os campos de força da percepção são tão fortes que, ao deixa-la, a arte pode mergulhar na secularidade”. O’DOHERTY, Brian. No interior do cubo branco: a ideologia do espaço na arte. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 3.
[vii] Não podemos nos esquecer também de uma instalação realizada pela artista no espaço aberto, longe dos condicionamentos dos edifícios fechados. Refiro-me à sua obra “Lugar para um corpo” realizada na exposição “Made by... feito por brasileiros”, no Hospital Matarazzo, em 2014.
[viii] “Gosto de coisas que tiveram vida. Acho bonita a pátina do tempo, o que ele deixa no material. Esteticamente, acho bonito. O tempo cronológico, cada um tem o seu. Muitos artistas novíssimos já têm seu trabalho super-reconhecido, e o meu só agora. O tempo deles é esse. O meu é agora” in PINTO, Ana Estela de Sousa. “‘A artista é mulher e negra, mas a arte é arte’, diz Sonia Gomes” in Folha de São Paulo. 19 de dezembro de 2017. [https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2017/12/1944244-a-artista-e-mulher-e-negra-mas-arte-e-arte-diz-sonia-gomes.shtml]. Acesso em 07 de agosto de 2018.
[ix] Refiro-me à “Gaiola” (2016) e a uma obra sem título de 2014.
[x] Daí a sugestão – acatada pela curadoria do MAC Niterói – quanto ao título de sua individual antológica: “A vida renasce, sempre”.
[xi] Após uma atenta leitura dos artigos, críticas e matérias jornalísticas a respeito de Sonia Gomes, se percebeu que a maioria deles interpreta sua obra como uma extensão de sua biografia e de uma narrativa permeada de momentos de solidão, racismo estrutural, patriarcalismo, machismo e perseverança em meio a muitas adversidades. De nenhuma maneira creio que esses acontecimentos biográficos não informam também à sua poética – como pude aprender no contato frequente com a artista. Porém, parecem haver poucos momentos em que os autores olham para a obra de Gomes e chegam a outras trilhas de interpretação – conforme esse presente artigo tenta fazer.
[xii] Sheila Hicks, Franz Erhard Walter, David Medalla, Teresa Lanceta, Huguette Caland, Abdoulye Konaté, Maria Lai e Heidi Bucher eram apenas alguns dos nomes de renome internacional a estarem na mostra. Konaté, curiosamente, estava na mesma área da exposição no Videobrasil da qual Sonia Gomes participou.
[xiii] BELL, Kirsty. “New yarns”. [https://www.tate.org.uk/context-comment/articles/new-yarns] Acesso em: 7.8.2018. [Tradução nossa.]
[xiv] “Um dia, um jornalista, numa matéria, disse que eu era ‘o Bispo de saias’. Então, fui pesquisar e descobri o Arthur Bispo do Rosário. Eu achei o trabalho dele maravilhoso e é claro que fiquei lisonjeada. Mas demorei a saber que ele existia! Sempre trabalhei a partir de mim; eu fazia por necessidade”. REBOUÇAS, Júlia. “Sonia Gomes”. 19º Festival de Arte Contemporânea SESC_VideoBrasil Panoramas do Sul / Artistas Convidados. São Paulo: SESC SP, 2015, p. 51.


(texto publicado no catálogo “Sonia Gomes: a vida renasce / ainda me levanto” relativo às exposições individuais “A vida renasce, sempre” [MAC Niterói, 2018] e “Ainda assim me levanto” [MASP, 2018], em 2018)
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