Moça com brinco de pérola
Berna Reale
[01 de outubro de 2013]
Após participar ter recebido o prêmio PIPA Online 2012, Berna Reale inaugurou duas mostras individuais. Uma realizada no MAR, ao passo que a outra é referente à sua nova indicação ao mesmo Prêmio Pipa, como artista finalista, com uma exposição no MAM Rio. Ambas tem aberturas marcadas para o mês de setembro. Nascida em Belém, no Pará, a artista tem cada vez mais atenção da crítica especializada e dos meios de comunicação de massa articulando fotografia, vídeo e a realização de performances no espaço público. Graduada em Artes Visuais pela UFPA e atuando profissionalmente como perita criminal, seus trabalhos geralmente são interpretados através da dor e da violência.
O título desse texto parte do meu encontro com “Soledade”, novo vídeo a ser mostrado no MAR. Após a câmera capturar um grupo de porcos, o espectador vê a imagem de angulação aberta da artista sobre uma biga dourada, conduzida por esses animais que chafurdam sobre a lama. Uma das imagens posteriores na edição é do detalhe de sua orelha, portadora de um brinco de pérola. Do meu desejo por produzir um texto que não abordasse a obra da artista nem por uma perspectiva da “poética paraense”, nem por colocar sua utilização do corpo como ponto fulcral (senso comum no que tangencia a performance), esse eco da tradição clássica me pareceu um estopim.
Ao olhar para as imagens produzidas por Vermeer, o pintor do quadro que dá título a esse texto, é perceptível a dimensão do uso de pérolas por mulheres na história da arte. Ao conversar com Berna sobre esta possível leitura do seu trabalho pelo viés do corpo feminino, ela me disse que “Para mim, meu trabalho não trata disso – homem, nem mulher, nem memória. Se você viu isso, é algo das suas referências, não das minhas”.
Intrigado com a resposta, procurei outros caminhos de leitura para esse objeto que me interessava. Talvez na biologia e no próprio procedimento de como as pérolas são produzidas, existem elementos que, longe de uma carga cultural sobre questões de gênero, podem ajudar a pensar sua poética.
É preciso criar situações de violência perante o olhar do público e da câmera – à espera da bicada dos urubus em “Quando todos calam”, a correr como uma atleta dentro de um presídio em “Americano” ou a ser transportada como um pedaço de carne em uma de suas performance sem título – para que as pequenas pérolas, isto é, os objetos artísticos, possam vir à tona. Do mesmo modo como as ostras levam cerca de três anos para produzir uma jóia, Berna também tem de se preparar e aguardar pelo crescimento do cabelo ou a mudança de sua silhueta a fim de chegar à imagem que irá, como ela mesma disse, “funcionar simbolicamente e atingir visualmente o espectador”.
Muitos me parecem os modos de sutura crítica de Berna Reale. O que me parece importante é que, como toda boa costureira, o observador seja capaz de produzir tanto costuras retas, quanto em zigue-zague – que suas relações com a história da arte, com a linguagem da performance, com o barroco (essa “pérola imperfeita”, em sua etimologia) e até mesmo com o corpo feminino e Belém do Pará não sejam pontos cegos, mas parte do processo de reflexão.
Por fim, vida longa à Berna, pois como pude aprender também, não é toda ostra que produz pérolas, mas apenas algumas espécies – e o ato de retirá-las é fragilíssimo.
(texto publicado originalmente na Revista Dasartes, na edição especial de cinco anos em setembro de 2013)