Música, comida e apodrecimento
[30 de novembro de 2011]
Para pensar a relação entre comida e sexo, irei tomar como exemplo para análise um videoclipe produzido recentemente e que diz respeito ao contexto da música eletrônica. Trata-se de um esforço em se realizar “crítica e história da arte” (ou talvez seja melhor falar em “visual studies” ou “cultural studies”) com objetos geralmente colocados de lado devido a um concepção de que estes se encontram inseridos dentro da “cultura de massa”. Videoclipes são um objeto de estudo ainda em expansão, mesmo que um variado leque de artistas que engloba nomes como Björk, Chemical Brothers, Daft Punk, Kanye West, Lady Gaga, Madonna, Michael Jackson e R.E.M. (apenas para citar alguns) já nos tenha demonstrado a sua capacidade de atingir um público vasto e heterogêneo, algo bem diferente das exposições de arte contemporânea (tidas como “eruditas” em contraposição ao caráter, teoricamente, “popular” destas imagens em movimento).
Em maio de 2006, a dupla de música eletrônica inglesa Simian Mobile Disco lançou o single “Hustler”, extraído de seu álbum de estréia “Attack Decay Sustain Release”. Com a música, como de costume no mercado fonográfico desde os anos 80, veio um videoclipe. Nele, um grupo de jovens mulheres brinca de telefone sem fio, ou seja, cada uma cochicha no ouvido da pessoa ao lado alguma coisa. A câmera, ao centro deste círculo, passeia pelos seus corpos e cria uma idéia de ciclo. Dos susurros apagados pela frase repetida “I’m a hustler baby, that’s what my daddy’s made me” para o encostar dos lábios que se transforma em carícias, lambidas e beijos. Ao final do clipe temos um grupo de mulheres que explicitam seu desejo lésbico aos olhos do espectador.
Para o espanto de alguns e para a obviedade dos mais puritanos, a MTV censurou o videoclipe em sua programação. O espaço para sua divulgação, claramente impulsionada pela censura, foi legado à Internet. [1] Visando manter uma divulgação de seu trabalho na televisão e, claro, rever de modo crítico o acontecido, o Simian Mobile Disco se une ao diretor Ace Norton e lança umasegunda versão do videoclipe. As mulheres também aparecem como elemento central nesta obra de curta-metragem, mas de modo bem diverso do primeiro produto. O sexo e o desejo são tópicos aqui também, mas como apontar para outro caminho quando a frase inicial da música afirma, através de uma voz feminina e na primeira pessoa, ser uma “prostituta”?
Um travelling e uma esbelta mulher com um maio pretô sobre um palco. De formato circular, este palco largo se assemelha àquelas pequenas alturas visíveis em boates, para que as pessoas dancem e sejam notadas acima do público. Este espaço se assemelha a um prato e, não à toa, ao menos no Brasil, tem o apelido de “queijo”. Assim que a música começa e esta mulher dança, esta estrutura gira como um prato de forno de microondas. Logo no décimo segundo do video, temos uma imagem de uma língua que lambe os lábios.
Esta imagem pode ser considerada uma espécie de resumo da obra. Irá remeter, por exemplo, ao célebre vídeo da artista brasileira Lygia Pape intitulado “Eat me: a gula ou a luxúria?”, de 1975. [2] Neste, uma boca tem seus lábios umidificados por uma língua cujo movimento remeterá ao limite entre esses dois pecados capitais. A boca que come é a mesma que beija; a língua que lambe um sorvete é a mesma que pode ser utilizada no sexo oral. Não à toa, ao menos em português, existe um sentido denotativo e conotativo para o verbo “comer”, ou seja, o mesmo pode ser empregado de modo chulo no que diz respeito ao ato sexual.
Ao se traçar uma espécie de história do pecado, é importante citar os textos de Evágrio do Ponto, monge do século IV e um dos escritores responsáveis pelas bases da religião cristã. Ele foi um dos primeiros a listar os chamados “oito males do corpo” que, futuramente, se tornariam os sete pecados capitais. Já nesses escritos, gula e luxúria são diretamente relacionadas:
A gula é a mãe da luxúria, o alimento de maus pensamentos, a preguiça de jejuar, o obstáculo ao asceticismo, o temor do propósito moral, a imaginação da comida, o delineador dos temperos, a inexperiência desenfreada, frenesi descontrolado, receptáculo da moléstia, inveja da saúde, obstrução das passagens corporais, gemido das vísceras, o extremo dos ultrajes, aliada da luxúria, poluição do intelecto, fraqueza do corpo, sono difícil, morte sombria. [3]
Voltando ao videoclipe e seguindo o dito por Evágrio do Ponto, depois que cinco magras e dançantes mulheres de maiô são apresentadas sobre este palco giratório ao ritmo das batidas da música, dão lugar a alimentos que também giram. Há uma associação do girar do microondas com o girar desses corpos esguios; mulheres como objeto de desejo sexual, mulheres como alimento. Batata frita, frango frito, donuts. A sobreposição da imagem estereotipada da juventude saudável e alimentos gordurosos. Gula e luxúria são uma coisa só.
Da sobreposição virtual ao derramar literal; logo na sequência, as modelos atiram sobre os seus corpos os alimentos antes mostrados. O que era um convite ao prazer se transforma em dejeto. O palco vira um pequeno aterro sanitário e as modelos agora são urubus que esfregam seus corpos sobre isso que agora é lixo. Elas podem e devem comer provocando o espectador, aliás, todas são (ainda) consideradas socialmente como “belas” (ou “gostosas”) e quando se é jovem apenas se deve viver o tempo presente.
O molho de macarrão vira maquiagem e o doce de leite é transformado em blush. Ecos da performance “Pancake”, de 2001, da artista também brasileira Márcia X são sentidos aqui. Nesse trabalho, quilos de leite condensado foram jogados pela artista sobre seu próprio corpo. Na sequência, confeitos coloridos a decoraram. Uma possível metáfora para o esperma e a efemerização da joalheria? O desperdício do alimento e o desperdiçar do tempo da juventude em sua busca pela perfeição dada pela artificialidade da indústria cosmética e da moda.
Para se fazer a manutenção desta beleza é preciso possuir capital. Não basta, portanto, introduzir e rastejar sobre alimentos; é necessário também comer os bens materiais e portadores, segundo Pierre Bordieu, de poder simbólico. Notas de dinheiro, bolsas, cordões, pérolas e cartões de crédito são misturados nisso que se transforma numa espécie de anti-salada de frutas. O problema, porém, é que nem todo o dinheiro do mundo é capaz de reverter um agente: o tempo.
Daí, portanto, ao final do videoclipe, após uma icônica imagem em que uma modelo é mostrada, em slow motion, a jogar leite/esperma sobre seu rosto e boca aberta, temos a representação de um mal latente no mundo contemporâneo e que batizei de “síndrome de Donatella Versace”. As modelos se transformam em mulheres com rostos esticados e corpos disformes que mais parecem ter saído de outro videoclipe, “Come to daddy”, de 1997, do Aphex Twin e dirigido por Chris Cunningham. Pode-se ter todo o dinheiro do planeta, mas nenhuma intervenção cirúrgica será capaz de fazer com que o tempo volte. Muito pelo contrário, o excesso delas apenas aponta para a única certeza da vida, ou seja, a morte e seu aspecto cadavérico, tal qual ensinado por Goya em seu célebre quadro “O tempo e as velhas”, de 1810-12.
O que resta a essas idosas? Vomitar. Colocar para fora líquidos que tem as cores de seus maiôs, ou seja, excretar aquilo que construía sua identidade cromática, sua aparência. Um incompleto arco-íris de vômitos aparece, jatos são lançados umas sobre as outras, mas a pose e a ostentação das jóias segue intacta. Apenas a imagem e os quinze minutos de fama importam nessas vidas. Chega-se ao chão, mistura-se novamente ao dejeto, mas não se perde o sorriso. O cenário que era preto anteriormente, tal qual uma boate, aqui fica branco. Alguns planos mostram de modo discreto os refletores no teto desse nítido estúdio; tudo é uma construção alegórica, uma ficção, conduzida de modo sábio por Ace Norton. Recorremos uma mais vez mais ao cristianismo e a um tópico recorrente na produção contemporânea, o da vanitas. Como diz Eclesiastes (1,2), o videoclipe nos deixa com a reflexão: “Vaidade das vaidades, tudo é vaidade”.
Como conclusão desta breve análise, é importante frisar que não apenas neste videoclipe Ace Norton lida com o alimento. Isso também é perceptível, por exemplo, em “Any which way”, de 2010, da banda Scissor Sisters, em que bananas, sushis e sashimis “chovem” pelo cenário. Aqui, mais uma vez, a relação entre comida e corpo (escultórico, talvez) é estabelecida. O queer rapper Cazwell também possui um videoclipe que fez um tanto de sucesso em 2010, chamado “Ice cream truck” e dirigido por Marco Ovando. Homens com corpos definidos dançam de sunga e lambem sorvetes. Enquanto isso, em “Flesh”, de 2010, do DJ Mr. Flash e dirigido por Cédric Blaisbois, mulheres se beijam tal qual a primeira versão de “Hustler”, mas em dado momento, os corpos são substituídos por carne crua.
É perceptível que tal qual um restaurante existe um cardápio extenso de videoclipes com essa temática. Cada um deles pede uma degustação diferente e a produção de um novo cardápio de textos que aponte suas relações através de suas semelhanças e contrastes.
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[1] Para mais informações sobre outros videoclipes censurados, consultar MILNER, Greg. “Indecent exposure”. Spin, março de 2008. Em: http://www.spin.com/articles/indecent-exposure (acessado em 20 de novembro de 2011).
[2] Para mais informações sobre este e outros trabalhos de Lygia Pape, consultar a dissertação de mestrado 'Lygia Pape e Hélio Oiticica: conversações e fricções poéticas', de Fernanda Pequeno, defendida na UERJ, em 2007. Disponível em: http://www.ppgartes.uerj.br/discentes/dissertacoes/dismstfernandapequeno2007.pdf (acessado em 20 de novembro de 2011 - página não disponível)
[3] PÔNTICO, Evágrio in SHAW, Teresa M. The burden of the flesh: fasting and sexuality in early Christianity. Minneapolis: Fortress Press, 1998. apud PROSE, Francine. Gula. São Paulo: Arx, 2004, p. 18.
(texto publicado originalmente na Revue Ganymede, em novembro de 2011)