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Não busque respostas em seus olhos


Vitória Cribb
[09 de setembro de 2022]

Atualmente, muitos são os lugares por onde um “jovem artista” pode se formar, experimentar e criar redes de afeto no Rio de Janeiro. Se olharmos para o que convencionamos chamar de geração zennial – ou seja, artistas nascidos aproximadamente entre meados dos anos 1990 e o início dos anos 2010 –, veremos que muitas das pessoas que, pouco a pouco, estão em processo de institucionalização no sistema das artes visuais, estudaram no Instituto de Artes da UERJ ou na Escola de Belas-Artes da UFRJ. A Escola de Artes Visuais do Parque Lage também desempenha um papel essencial – especialmente nos últimos dez anos, quando foram iniciados programas gratuitos que possibilitaram uma crescente (e sempre tensa) desilitização intrínseca ao Jardim Botânico e à Zona Sul da cidade.

É interessante observar esse panorama em relação à biografia e formação de Vitória Cribb. Nascida e criada no bairro de Campo Grande, Zona Oeste do Rio de Janeiro – região comumente chamada simplesmente por “subúrbio” por parte da população carioca -, a artista não vivenciou nenhuma dessas instituições por onde passou parte da jovem geração de artistas periféricos cariocas. Em sua trajetória há a presença da universidade pública, mas pelo campo do design; assim como artistas de diferentes gerações como Ana Cláudia Almeida, Sofia Caesar, Fernanda Gomes e Walter Carvalho, Vitória Cribb estudou na Escola Superior de Desenho Industrial da UERJ, referência nacional para o campo.

Sua pesquisa como artista visual, portanto, tem início no design e em seu interesse por uma cultura visual semelhante àquela encontrada nos videogames e ambientes virtuais tridimensionais. The Sims, Second life e diversos open world games (“jogos de mundo aberto”) faziam mais parte de sua rotina do que as discussões em torno dos cânones eurocêntricos histórico-artísticos em processo de revisão e desconstrução como encontrado nos espaços acadêmicos dedicados às artes visuais. Este lugar de formação me dá a impressão – especialmente depois de conviver e trabalhar com a artista – de que a sua pesquisa como artista visual é dotada de uma peculiar liberdade de experimentação. Longe de responder a quaisquer agendas que, por vezes, se apresentam como desejos de um grupo coeso de artistas visuais, à Vitória Cribb sempre interessou trabalhar em seu próprio ritmo, de acordo com seus anseios existenciais e com as ferramentas que tem em suas mãos: a escrita, sua voz, a produção de som e a modelagem de figuras virtuais tridimensionais.


“Prompt de comando”, seu primeiro trabalho audiovisual, de 2019, nos atesta o seu interesse pela produção textual. Jogando com um interpretador de linha de comando - vintage para aqueles que acompanharam edição a edição a história do sistema operacional Windows, mas extremamente cotidiano para programadores -, Cribb escreve e deleta perante os nossos olhos. Nas primeiras linhas, ela afirma: “Meu corpo sempre foi virtual, intocável, / não amado e posto de curiosidade”. Nos versos seguintes, as mãos que digitam esse texto titubeiam e mudam rapidamente uma palavra. Elas diziam “O fascínio e o medo pautavam a relação / éramos corpos negros na era do mundo real”, quando, rapidamente, a palavra “negros” é apagada e substituída por “digitais”.

Tratando-se de uma artista negra – inclusive, convém lembrar que a artista é brasileira por parte materna e haitiana por parte paterna -, talvez pudesse se esperar que a produção de Cribb se delimitasse de forma explícita em uma discussão sobre sua negritude, seu lugar de fala e suas relações com a noção de periferia. Longe de ser avessa a essas discussões, esse trocar de palavras que “Prompt de comando” traz é exemplar da forma tênue como a artista opta por lidar com esses tópicos. Basta lermos o texto apresentado na íntegra para podermos associá-lo a uma reflexão sobre o racismo, o exotismo e a noção de exclusão – qual o lugar dos corpos negros não apenas nas hierarquias sociais cotidianas que convencionamos de encarar como o “real”, mas também nas imagens e narrativas geradas por computador? A quais navios a artista se refere quando diz “tudo começou quando entrei no navio e / comecei a navegar. / por ingenuidade deixei minha alma. / não era venda, era escambo.”? As respostas são dolorosas e, ao mesmo tempo, felizmente, nos convidam a múltiplas interpretações.


Jogando com a edição de som das teclas e sons de erro comumente escutados em computadores, a artista intercala o seu texto com imagens de uma figura feminina digital – uma avatar – que tenta sair de uma tela de computador. Com pele preta e cabelos brancos, se trata de um dos primeiros experimentos de Cribb com a presença de avatares em seu trabalho, algo que será desenvolvido e mesmo aperfeiçoado quanto à técnica posteriormente, como em “@Ilusão”. Neste outro trabalho, de 2020, feito no ápice de todas as dúvidas existenciais, científicas, sociais e econômicas que a pandemia do COVID-19 trazia ao mundo, o texto digitado é substituído pela voz da própria artista que, em uma edição de som que cria um efeito semelhante à textura dos áudios tão compartilhados no Brasil via Whatsapp, reflete todo o tempo sobre as incertezas que nos acometiam – e da qual sofreremos as consequências por tempo indeterminado.

Assim como em uma aula de anatomia, as avatares negras que aparecem neste vídeo estão a todo tempo emulando emoções e mostrando um inventário de poses que a modelagem digital pode trazer. Em dado momento, um rosto se transforma em outros perante os nossos olhos – a boca se torna mais grossa, as bochechas mudam de forma. Como dito de maneira indireta pelo texto da artista, o vídeo dialoga com o perverso mundo do engajamento, do loop e das formas como nossos corpos vão se adaptando e desejando o flerte ininterrupto com o algoritmo.


Não é coincidência que no mesmo ano a artista tenha finalizado o texto “Espontaneidade programada” – publicado em 2022 – acerca justamente dessa relação dúbia entre a sedução e o aprisionamento articulados pelas ficções da internet, das redes sociais e dos nossos muitos eus. Nesta publicação, logo após citar a coincidência do algoritmo ter sugerido a música “Technologic”, do Daft Punk, a autora listará verbos que, inevitavelmente, nos remeterão aos versos da própria música. São esses verbos no infinitivo que são espiralados como a dupla hélice do DNA, depois transformados em oceano e, por fim, em telas de projeção dentro de “@Ilusão”. Novamente, a relação da artista com uma escrita que todo o tempo joga com a linguagem de prompt [1] – com seus underlines, barras, parênteses, chaves e símbolos linguísticos – se faz presente.

Recentemente, neste ano de 2022, a artista estreou um trabalho que aprofunda seu interesse pela noção de narração, ficção e animação digital. “VIGILANTE_EXTENDED” dá prosseguimento ao seu interesse por avatares chamadas de “Vigilantes” – figuras femininas permeadas por muitos olhos e orelhas. Se durante a pandemia ela desenvolveu NFTs onde essas figuras eram vistas por diversos ângulos em movimento, para este trabalho essa série de avatares cresce e se complexifica anatomicamente e no que diz respeito ao uso da luz.

A ficção criada por Vitória Cribb roça a noção do “olho que tudo vê” – passível de ser relacionada com desde os olhos turcos (Nazar) e a figura de Hórus ao célebre livro “Vigiar e punir” de Michel Foucault e o fenômeno do Big Brother Brasil. As Vigilantes são figuras que estão continuamente observando as nossas ações no ciberespaço. Assim como sereias, elas nos deixam ser seduzidos pelos reflexos nos espelhos pretos que são a matéria de nossos computadores; assim como Narciso, nos apaixonamos pelas nossas próprias imagens e nos afogamos. De forma semelhante, as luzes que piscam constantemente ao final do vídeo também nos convidam à vertigem, endossada por uma trilha sonora feita de Anelena Toku e OLHO, além da edição de som de Ramon Silva, tornando esse vídeo da artista aquele que mais convida à imersão.




Chama a minha atenção a maneira como Cribb tem experimentado formas de sair das fronteiras dos monitores e das projeções. Tanto para sua exposição no Denver Art Museum, quanto para a sua exposição relativa ao Prêmio PIPA, ela selecionou alguns frames de seus vídeos – ou seja, imagens modeladas digitalmente e com altíssima definição – e os ampliou em diálogo com a arquitetura. Mais do que isso, no Paço Imperial, ela também incluiu cópias de seu texto “Espontaneidade programada” para serem levadas. É interessante notar como, de pouco a pouco, somos tomados não apenas por suas imagens em movimento, mas pela escala agigantada de suas personagens – transformando o nosso corpo, enquanto espectadores, em algo minúsculo. Além disso, somos convidados a ler em voz alta e solitariamente as suas palavras. Suas melancólicas reflexões sobre a “insanidade virtual” [2], o excesso, o mise-en-âbime e a solidão de suas personagens pode, por fim, habitar as nossas bocas, corpos e existencialismos.

Há uma frase presente em “VIGILANTE_EXTENDED” que parece resumir a recente, mas já experimental e ressonante trajetória da artista: “Não devemos buscar respostas em seus olhos”. Não aconselho ao público mergulhar em seu oceano de verbos no infinitivo buscando respostas imediatas e panfletárias sobre tantas questões que afligem não apenas o mundo das e-girls e e-boys. A artista parece mais interessada em fazer perguntas, provocar pequenas confusões e nos mostrar que talvez seja impossível tentarmos escapar da “Máquina”.

Enquanto constatamos a impossibilidade de nos despedir de suas artimanhas e desejar encontros não programados [3], talvez valha a pequena seguir um dos conselhos de Vitória Cribb: acertemos a nossa postura.

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[1] Essa experimentação com as diversas formas como a escrita pode ser explorada em seu trabalho também pode ser vivenciada na versão em website de “@Ilusão”, feita para a plataforma NewArt.city, em 2020.
[2] Faço uma referência aqui ao videoclipe de mesmo título (“Virtual insanity”) da banda Jamiroquai, lançado em 1996.
[3]  Faço referência a algumas frases que compões os últimos parágrafos de seu texto “Espontaneidade programada”, de 2020: “Talvez seja viciante se enganar e acreditar que a cada dia que passa estamos cada vez mais distantes do que não desejamos ser e mais perto da divindade criada pelo ser humano. Máquina. Me despeço, ou melhor, tento me despedir das suas artimanhas e espero encontros não programados. Espero sua resposta. Tenho certeza que sabe quais aplicativos naveguei ao escrever o primeiro parágrafo dessa carta.” CRIBB, Vitória. “Espontaneidade programada” in Diffractions. Lisboa, Portugal, número 5, 2022. Acesso em 02 de setembro de 2022. [link: https://revistas.ucp.pt/index.php/diffractions/article/view/11471/11061]


(texto relativo à pesquisa de Vitória Cribb, feito como parte da publicação impressa do Prêmio Pipa 2022, devido à premiação da artista)
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