“Não temo quebrantos”
Felipe Caldas
[16 de março de 2015]
Sermos da mesma geração e cursarmos ao mesmo tempo nossos doutorados em história da arte era apenas o começo da série de coincidências que perpassa o meu percurso e o de Felipe. Se ele foi criado na pacata cidade de Alvorada, ao lado de Porto Alegre e com menos de duzentos mil habitantes, também fui acostumado a uma relação de centro e periferia com o Rio de Janeiro. Ser criado na zona oeste da cidade, no enorme bairro de Jacarepaguá, também me ensinou, assim como percebi nos relatos de Felipe, a sempre ter de sair duas horas antes de casa para qualquer compromisso e levar, para o bem e para o mal, a vida muito a sério.
Conhecer o seu ateliê foi como visitar a casa em que um dia fui criado e onde minha mãe ainda reside; a amálgama entre vida profissional e vida familiar, entre vida ativa e contemplativa, se tornou nostálgica e cheia de detalhes. Sentamos todos na mesma mesa para almoçar sem distinção entre mãe, filhos e visita, com cachorros que dormiam aos nossos pés, e com um fluxo de assuntos que se movimentava das questões específicas daqueles que estudam as artes visuais para observações sobre a vida que apenas as matriarcas sábias são capazes de construir.
Artista e curador dessa exposição coincidem quanto ao fato de não serem frequentadores de nenhum espaço religioso, mas contrastam quanto às suas ascendências afro-brasileiras: o primeiro é filho de Ogum e este que escreve é de Xangô. Não podemos negar a presença constante de cantos, imagens e objetos afro-brasileiros dentro dos nossos espaços domésticos desde nossas infâncias; estes formaram a nossa cultura visual e a ideia do que seria uma religião de nossas famílias.
Imagino que seja a partir desse contato diário e reflexivo sobre a relação entre imagem e religião que advenha o interesse de Felipe Caldas na construção da série nova de trabalhos apresentados no Santander Cultural. “Corpo santo” nasce da rotina, dos laços familiares e dos afetos que transbordam nossas relações.
Já numa série de pinturas expostas em 2012 e retomadas em 2014, o artista explorou um caráter mais narrativo de sua produção: os sonhos. Quando observamos algumas destas telas, como “Eu sonho com Beuys e Antônio Dias” (2012), onde Felipe inicia uma pesquisa em que dialoga com alguns dos artistas que admira e que se configuram como suas referências, sua pintura se torna menos violenta e dispersa, construindo uma imagem mais narrativa. Na obra citada e relativa a Beuys e Dias, é na anatomia do animal ao centro da composição que se concentram as manchas assimétricas e de cor barrosa que vinham a ser exploradas pelo artista. O mesmo pode ser dito de outras imagens dessa mesma série em que áreas de pinceladas rápidas contrastam com figuras que aparecem de modo difuso do que poderia ser o fundo da imagem.
No que diz respeito às novas pinturas e desenhos apresentados no Santander Cultural, o primeiro dado que me chama a atenção diz respeito à monumentalidade da forma que não está contida exclusivamente na escala das telas, mas no modo como os corpos as preenchem. Felipe dá destaque às figuras centrais a essas composições e, mais que isso, proporciona um entorno para suas carnes que faz com as que as imagens respirem e as vejamos com clareza. Ainda há espaço para experimentação dos materiais e das pinceladas rápidas, mas esses elementos não se sobrepõem aos corpos, e sim contribuem com seu destaque.
Temos uma resolução formal da sacralidade que bebe claramente de tradições pictóricas ocidentais e muitas vezes cristãs – não à toa aí estão citações a Andrea Mantegna e à Capela Sistina de Michelangelo. Porém, o que me parece interessante é que temos perante os nossos olhos um corpus de distintas configurações físicas da santidade tanto numa perspectiva cristã, quanto com elementos iconográficos afro-brasileiros, como de outras distintas culturas como a budista (e suas tartarugas) e a egípcia (o ouroboros). Mais do que isso, fica o convite para que o espectador acesse esse conjunto de signos e estabeleça cruzamentos a partir de seus vocabulários imagéticos – um homem sentado num trono vermelho não necessariamente é São Jerônimo, do mesmo modo que uma mulher que traja azul não deve ser rapidamente associada a Iemanjá. O artista cria, portanto, um panteão de colagens de elementos que são, antes de tudo, apenas imagens.
“A fé na verdadeira imagem trai-se também a si mesma, já que facilmente pode ser abalada”, segue a argumentar Hans Belting.[1] Nas duas instalações presentes na exposição, essa traição inerente a qualquer imagem vem à tona e denota a potência da pesquisa de Felipe Caldas. Um barco de papel, objeto ritualístico de alguns grupos budistas, é pintado de dourado, içado ao ar e tem sua fragilidade escancarada. Já no chão vemos um ponto riscado (assinatura gráfica da umbanda) criado pelo artista e feito com sal grosso. O vento que pode derrubar o barquinho é o mesmo capaz de dissolver o grafismo do chão e verter ambas as instalações naquilo que sempre foram: imagens.
Experiências visuais como essas permitem cruzamentos entre espaços, tempos e crenças que convidam o público a fruir e aprender sobre as imagens na mesma medida que me fizeram conhecer as até então por mim ignoradas casas de batuque no Rio Grande do Sul. A partir de meu desconhecimento, pude perceber os tantos pontos em comum não apenas entre o batuque daqui e a umbanda do Rio de Janeiro, mas entre a persistência de Felipe Caldas na criação de imagens e a minha própria na tentativa de escrever.
Seguimos em busca de imagens e palavras verdadeiras que tem prazo de validade; criamos e analisamos esses corpos santos que, quando jogados para o mundo, rapidamente se tornam profanos. Conscientes dos nossos limites, não tememos, porém, os quebrantos; parafraseando e adaptando um canto de Clara Nunes, “Dentro do samba nós nascemos, / nos criamos, nos convertemos / e ninguém vai tombar a nossa bandeira”.[2]
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[1] Conferir BELTING, Hans. A verdadeira imagem. Porto: Dafne Editora, 2011, pág. 10.
[2] “Guerreira”, composta por João Nogueira e Paulo Cesar Pinheiro, e cantada por Clara Nunes no disco homônimo lançado em 1978.
(texto curatorial publicado originalmente no catálogo da exposição "Corpo santo", de Felipe Caldas, realizada no Santander Cultural, em Porto Alegre, entre os dias 17 de março e 26 de abril)
[1] Conferir BELTING, Hans. A verdadeira imagem. Porto: Dafne Editora, 2011, pág. 10.
[2] “Guerreira”, composta por João Nogueira e Paulo Cesar Pinheiro, e cantada por Clara Nunes no disco homônimo lançado em 1978.
(texto curatorial publicado originalmente no catálogo da exposição "Corpo santo", de Felipe Caldas, realizada no Santander Cultural, em Porto Alegre, entre os dias 17 de março e 26 de abril)