Nelson Leirner
[18 de abril de 2015]
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No começo de 2009, quase ao final do segundo mandato do presidente Lula, foi anunciado pelo governo federal um programa de habitações populares batizado por “Minha casa, minha vida”. A proposta era de construir cerca de um milhão de casas em diversas regiões do Brasil e possibilitar que famílias com pouco rendimento financeiro fossem capazes de pagar parcelas de baixíssimo valor. Desse total de casas, cerca de 400 mil eram destinadas a pessoas que recebem entre zero e três salários mínimos.
Seis anos após esse anúncio, muitas coisas mudaram no cenário político do Brasil. Lula saiu de cena após oito anos e em seu lugar, já no segundo mandato, se encontra a presidenta Dilma Rousseff. Após sua subida no poder, crescentes foram os escândalos sobre esquemas de corrupção dos mais diversos tipos e núcleos do governo brasileiro, levando seu governo a ser apreendido como uma mancha vermelha de corrupção. Faço minhas as palavras do historiador Sidney Chalhoub em texto divulgado durante as últimas eleições presidenciais, no final de 2014: “A insistência no tema da corrupção, como se o atual governo tivesse inventado semelhante monstrengo, é uma combinação ácida de ignorância e hipocrisia. Vamos primeiramente à ignorância histórica, na qual a grande imprensa chafurda com grande desenvoltura. A corrupção está, por assim dizer, no código genético do Estado brasileiro”. [1]
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Ao saber que ele seria o artista responsável pelo Projeto Respiração, organizado pela Fundação Eva Klabin, no Rio de Janeiro, pensei que ele refletiria sobre o caráter colecionista da instituição. Sendo o espaço a antiga residência da senhora que dá nome à fundação, uma colecionadora de obras de arte que possuem um percurso de objetos greco-romanos antigos até alguns quadros do impressionismo, não me espantaria se Nelson Leirner povoasse alguma das salas da casa-museu com seus objetos coletados em mercados populares. No lugar das miniaturas, o artista preferiu refletir sobre um tópico diretamente proporcional a uma exposição que se passa dentro de uma casa e também ao seu interesse pelos objetos industriais – a moradia popular.
Daí se compreende melhor o título de seu projeto – “Nossa casa, minha vida”. Apropriando-se do programa do governo brasileiro aqui comentado, o artista retira de seu nome a primeira pessoa do singular e a transforma em plural nos deixando uma pergunta: “nossa” de quem? Do artista e do público? Do “povo brasileiro”? Fica a tensão estabelecida entre um programa que visa a moradia popular e uma casa situada em uma das regiões mais nobres do Rio de Janeiro, cuja coleção apenas foi possível devido ao poder financeiro de sua proprietária. A Sala Inglesa idealizada por Eva Klabin, onde se concentravam obras de Joshua Reynolds e Thomas Lawrence, lugar onde ela recebia seus amigos, foi esvaziada e ganhou objetos, papéis de parede e decoração de uma certa ideia de moradia popular. Público e privado se fundem numa só proposição que, inevitavelmente, também roça nos contrastes sociais enormes que constituem a cultura do Rio de Janeiro.
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Creio que esse trabalho de Nelson Leirner (e sua obra como um todo) seja especialmente potente na capacidade de construir imagens que são mais indiciais do que explícitas – entrar nessa quitinete dentro de um palacete colecionista é também jogar para o espectador sua capacidade de interpretação. Seria, portanto, uma reflexão socioeconômica que agradaria a Pierre Bordieu? Ou se configura como uma instalação que é pautada num exotismo do que são as moradias populares brasileiras? Independentemente da resposta, é a dúvida que torna o projeto potente.
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O que desconcertava na exposição era um objeto ali colocado e que dizia demais: um álbum com diversos recortes de jornal sobre escândalos de desvios de verba ou problemas de infra-estrutura do programa “Minha casa, minha vida”. Somado a esses recortes, alguns versos escritos por alguém (seria o artista?) criticando o governo corrupto do Partido dos Trabalhadores. Indignar-se é preciso e a trajetória do artista é dialógica a isso, mas será que o movimento pendular entre governo de direita e de esquerda ainda faz sentido no Brasil? Apontar o dedo para um partido e levar a crítica para uma literalidade no campo da palavra irá contribuir com as mudanças do mundo – ou se trata de algo muito cômodo quando é feito a partir de nossas salas inglesas?
Na dúvida, prefiro seguir com a dimensão histórica da corrupção sugerida por Chalhoub – não se trata de perdoar as corrupções recentes, mas lembra-las em conjunto com um percurso secular de escândalos (existiria algo mais escandaloso do que a escravidão?) no Brasil. No que diz respeito a Nelson Leirner, prefiro pensar suas imagens também através de uma perspectiva histórica que remete aos anos 60 e que, como qualquer artista, por vezes cria imagens repletas de camadas de significado e, por outras, transforma palavras em chumbo.
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[1] Conferir CHALHOUB, Sidney: “A ‘velha corrupção’ (carta aberta aos jovens sobre as eleições)” in [http://www.viomundo.com.br/politica/sidney-chalhoub-em-carta-aberta-jovens-eleitores-velha-corrupcao-brasil.html]. Acesso em 15 de abril de 2015.
[1] Conferir CHALHOUB, Sidney: “A ‘velha corrupção’ (carta aberta aos jovens sobre as eleições)” in [http://www.viomundo.com.br/politica/sidney-chalhoub-em-carta-aberta-jovens-eleitores-velha-corrupcao-brasil.html]. Acesso em 15 de abril de 2015.
(texto publicado originalmente na ArtNexus de março-maio/2015)