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Nós sabemos, nós aprendemos


Véxoa: nós sabemos
[21 de novembro de 2020]
[texto en español]
[text in english]


“Véxoa: nós sabemos”, exposição com curadoria de Naine Terena e inaugurada recentemente na Pinacoteca de São Paulo, tinha sua abertura prevista para o mês de julho. Nesses três meses entre esse planejamento e agora, observamos muitas guinadas trágicas no Brasil: os efeitos da pandemia do COVID-19 são cada vez mais visíveis em um número de mortos que oscila, mas não cessa; a taxa de desemprego atingiu nível recorde de 14,4%; as queimadas na Amazônia e no Pantanal se transformam em infeliz rotina... e seguimos sob a presidência de um senhor cujos interesses privados e incapacidade de articulação democrática já são conhecidos mundialmente há quase dois anos.

Há uma tragédia que se relaciona de maneira direta com os artistas participantes da exposição: a disseminação do coronavírus entre a população indígena no Brasil que levou a cerca de 40 mil pessoas contaminadas, quase mil mortos[1]e atestou a contínua ausência de ação do poder público quanto aos povos originários desse território que hoje chamamos de Brasil. Dentre os vários nomes que poderiam ser citados, dois ganharam considerável espaço nas redes sociais em um luto coletivo: Vovó Bernaldina, mestra Macuxi da Terra Indígena Raposa do Sol (estado de Roraima) e Feliciano Lana, de São Gabriel da Cachoeira (estado de Amazonas).

“Véxoa: nós sabemos”, portanto, pode ser vista à contraluz desses eventos recentes. A mostra tem sua abertura conjugada com uma reconfiguração da coleção permanente da Pinacoteca – uma das maiores coleções públicas de arte do Brasil e com um lastro histórico que vai aproximadamente do século XIX à arte contemporânea. Nos últimos anos, a instituição tem se esforçado por “descolonizar” sua coleção e acrescentar ao seu acervo mais vozes afro-brasileiras, indígenas, de artistas mulheres e descentralizadas do Sudeste brasileiro. Esta exposição, portanto, faz coro a outras exposições recentes como as de Rosana Paulino, Grada Kilomba, Marepe e Di Cavalcanti.

Ao entrar na exposição, o público tem logo à frente dois conjuntos de trabalhos que parecem ativar uma expectativa do senso comum sobre o que seria a produção de arte indígena no Brasil: os vestuários feitos por artistas Wauja (do Parque do Xingu) e as cerâmicas produzidas por artistas Yudjá (do Parque do Xingu). Ambas as séries de objetos são feitas artesanalmente e remetem a tradições seculares – as máscaras Wauja são utilizadas nos rituais de doença e cura dos Apapaatai que envolvem dança e diferentes posições sociais. Confeccionadas com fibras de buriti, sua presença ao fundo da sala atrai o corpo do espectador, ao mesmo tempo que nos faz lembrar que estas peças estão em um contexto distante do ritual. À sua frente, três cerâmicas Yudjá também atraem a atenção com suas pinturas feitas à base de jenipapo e urucum, matérias infelizmente já escassas nas aldeias e que atualmente devem ser colhidas perto de fazendas, um exemplo da disputa de terras nos territórios indígenas.

É importante observar essas cerâmicas e máscaras porque, se por um lado elas vão de encontro a um fazer artesanal que é historicamente associado à produção de arte pelos povos originários, por outro lado elas já deixam visível que um objeto nunca será igual ao outro. Em outras palavras, esta opção curatorial vai na contramão do olhar branco e de qualquer concepção dos fazeres tradicionais como repetitivos, serializados e estanques em uma concepção do tempo pautada por um relógio moderno e colonial; cada vaso tem uma forma e uma pintura diferente, assim como cada ação do ritual Apapaatai será diferente da outra.



Ao lado desses objetos, o cruzamento entre mídias salta aos olhos devido à inclusão do essencial vídeo de Olinda Muniz Tupinambá. “Kaapora: o chamado das matas” traz vinte minutos que surpreendem o espectador – como classificar essas narrativas? O filme traz o corpo e voz da diretora narrando diferentes aspectos da sua vida na Terra Indígena Caramuru Paraguaçu, em Pau-Brasil, no estado da Bahia. O que parece ser uma narrativa autocentrada que registra aspectos cotidianos da sua vida rapidamente tem uma virada quando seu corpo vai de encontro aos “encantados” e o filme ganha um tom que parece menos documental e mais voltado para as suas cosmologias.

É nesse zigue-zague entre tempos e planos espirituais que as imagens nos fazem duvidar de que um jabuti filmado seja “apenas” um jabuti ou que as raízes de uma árvore sejam unicamente o que uma câmera consegue mostrar. O corpo da narradora se transforma, um fogo feito com computação gráfica é sequenciado com imagens de queimada e, quando percebemos, estamos envolvidos em uma trilha sonora que mistura cantos tradicionais e Gilberto Gil, pintura corporal e ativismo, o tempo limitado de uma obra audiovisual e o tempo necessário para que uma plantação renasça depois de sua destruição. Esse vídeo e sua capacidade de articular tantos saberes tradicionais a partir de uma mídia tão globalizada como o vídeo digital me parece exemplar quanto às opções curatoriais da exposição: os fazeres e saberes dos povos originários do Brasil, quando transformados em imagens para compor uma exposição, podem ter as mais diversas formas e serem distantes de um caráter panfletário, literal e monocórdico.

Nas três salas que compõem a exposição, a presença audiovisual é notória e vai de encontro à trajetória da curadora Naine Terena, pesquisadora da relação entre audiovisual e educação indígena há muitos anos e que, em seu próprio fazer como artista visual, também se vale das tecnologias digitais. Bons exemplos são as séries de vídeos da Associação Cultural dos Realizadores Indígenas (Ascuri), que é formada por realizadores Guarani-Kaiowa e Terena que produzem dezenas de vídeos em torno de fazeres tradicionais e da luta pela terra. O coletivo também organiza mostras audiovisuais e desenvolve webséries: os saberes podem e devem estar visíveis publicamente. Indo por outro caminho, há também os vídeos de Jaider Esbell onde o artista se vale do recurso das livespara realizar performances, produzir imagens e se colocar em criação coletiva com seus parentes Macuxi. Como ele canta em um dos vídeos, “Bem-me-quer, mal-me-quer, quem é que güenta o cajado do pajé?” – a pergunta fica no ar, mas a imagem do mesmo vídeo parece responder com uma frase pintada: “floresta em pé, fascismo no chão”.


Outros elementos anunciados no vídeo de Olinda Muniz Tupinambá que ecoam na exposição são as noções de destruição e renascimento. Denilson Baniwa realizou tanto um trabalho a partir das cinzas do incêndio do Museu Nacional ocorrido em 2018, quanto uma plantação do lado de fora da Pinacoteca, logo em sua entrada. Seu olhar parece interessado não apenas na contemplação daquilo que virou pó e que dizia respeito às histórias de diferentes povos originários do Brasil, mas também à possibilidade de se plantar novos futuros. Outra opção curatorial que também versa sobre essa noção de trauma e iconoclasmo foi a de mostrar as cerâmicas de Tamikuã Txihi que participaram da Mostra Regional M’Bai de Artes Plásticas, em Embu das Artes, em 2019, e foram vandalizadas durante a exposição. Mostrar essas pequenas cerâmicas que trazem imagens de onças e foram fragmentadas por um ato racista é não esquecer tanto das violências diárias que acossam os povos originários, quanto recordar que destruir a matéria não será o bastante para apagar imagens e saberes ancestrais.

Por fim, há uma série de artistas cujas pesquisas parecem se relacionar às possibilidades de estabelecer conexões entre diferentes agentes no tempo e no espaço a partir de narrativas cosmogônicas que, ao serem oralizadas e/ou plasmadas em imagem, seguem em constante transformação. Penso, por exemplo, no interessante diálogo entre as pinturas de miração de Daiara Tukano e a extensa série de desenhos feitos por seu tio, o Pajé Gabriel Gentil Tukano. A geometria transcendental de Daiara Tukano nos possibilita conectá-la a outros artistas na exposição como Kaya Agari e Ailton Krenak, ao passo que as opções mais antropomórficas de Gabriel Gentil Tukano geram uma aproximação com as pinturas feitas a partir de cantos tradicionais pelo MAHKU e nas costuras transgeracionais de Gustavo Caboco. A transmissão de saberes pode também se dar em imagens que parecem estáticas aos nossos olhos, mas que articulam memórias e novas iconografias. Esta exposição nos recorda que há mensagens com um destinatário específico que escapa aos desejos universais e globais que articulam o museu.


“Véxoa: nós sabemos” é uma exposição essencial para a história da arte recente no Brasil; interpretando seu título, poderíamos entender esse “nós” como uma forma de dizer “nós, os povos originários, sabemos”. Na minha condição de pesquisador/público que não está neste lugar de fala, posso afirmar que “nós aprendemos” com esta exposição e desejamos que esse projeto não seja um episódio isolado nas narrativas da – como Naine Terena gosta de dizer – “arte brasileira contemporânea feita por indígenas”, mas sim parte de um movimento maior, rumo a muitas outras exposições coletivas, individuais, textos e projetos de pesquisa organizados por pessoas advindas dos povos originários.

Nós – todas, todes e todos – esperamos que assim seja e da forma como os ventos têm soprado nos últimos anos nos sistemas das artes visuais no Brasil e no mundo, essa expectativa parece se confirmar. Precisamos, como “Véxoa” nos ensina, seguir agindo perante as adversidades de um mundo pós-COVID-19.


[1]Segundo dados atualizados periodicamente pelo Instituto Socioambiental disponíveis no website https://covid19.socioambiental.org/ [acesso em 18 de novembro de 2020].


(texto crítico sobre a exposição “Véxoa: nós sabemos”, com curadoria de Naine Terena e aberta na Pinacoteca de São Paulo entre 31 de outubro de 2020 e 22 de março de 2021. texto publicado originalmente na TERREMOTO - Contemporary Art in the Americas)
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