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O He-Man dança um rock gravado por Tom Jobim


[15 de dezembro de 2024]

A poucas semanas de iniciarmos a montagem de “Fullgás: artes visuais e anos 1980 no Brasil” na unidade do CCBB Rio de Janeiro, ouvindo uma playlist no Spotify que concentrava a produção musical brasileira durante esse mesmo recorte histórico, escutei por repetidas vezes a “Festa do estica e puxa”, de Xuxa. Lançada em 1987, a música faz parte do terceiro álbum da cantora e apresentadora de televisão, “Xegundo Xou da Xuxa”, posterior ao sucesso do álbum “Xou da Xuxa”, de 1986.

Sendo alguém nascido em 1988 – e sendo, portanto, parte de uma larga geração dos “baixinhos” de Xuxa –, tive o prazer de ouvir essa música em diversas festas da minha infância a tempos recentes. Nunca havia me atentado para os detalhes de seus versos e sempre me concentrei no seu clássico refrão: “e todos dançam o pega, estica e puxa / e viva a festa da Xuxa”. Uma sequência de palavras – escritas pelos irmãos Bell Marques e Wadinho Marques, fundadores da influente banda de axé Chiclete com Banana, criada em 1980 – grudou na minha cabeça e começou a ecoar como um resumo das relações entre as imagens e a cultura popular durante a década de 1980 no Brasil: “E os baixinhos vão chegando numa nave espacial / tem até um escoteiro vestido de general / o He-Man dança um rock gravado por Tom Jobim / enquanto a She-Ra namorava o Esqueleto no jardim”.

Para além da referência à nave espacial que compunha o cenário de seu próprio programa televisivo, esses versos tencionam (e talvez ridicularizem) a própria lembrança recente da ditadura militar no Brasil – com fim decretado em 1985 – e jogam de maneira bem-humorada com os desenhos animados estadunidenses que faziam sucesso e eram incluídos no próprio Xou da Xuxa. Em um país que respirava novos ares, mas que padecia de uma crescente crise econômica, estas palavras trazem algo libertador e luxurioso que propõem uma licença poética na sua referência à música popular brasileira e um desejo de desconstrução de um nacionalismo gritante durante a ditadura militar.

Misturam-se, portanto, os irmãos fictícios He-Man e She-ra com Tom Jobim – já nesse momento enxergado como pilar da música e institucionalizado internacionalmente como um dos pais da bossa nova – e o rock, gênero musical associado à juventude pós-ditadura no Brasil. Há uma tremenda abertura poética nesses versos e em toda a composição de “Festa do estica e puxa”; até mesmo She-ra e Esqueleto, heroína e vilão do desenho animado, foram pegos namorando no jardim – a que ponto chegamos!

Com um sorriso no rosto, comecei a pensar como essa liberdade narrativa é algo essencial para o exercício curatorial que gerou “Fullgás”. Logo no começo de sua concepção, nos pareceu essencial fazer uma exposição com obras datadas exclusivamente durante a década de 1980 e onde reuníssemos artistas que iniciaram as suas carreiras nesse recorte histórico. Independentemente de suas idades – por mais que saibamos que grande parte destes estivessem entre os seus vinte e trinta anos –, era importante ter como critério a concentração de obras feitas nesse período que saboreava o tão aguardado início do fim da ditadura militar. Não nos interessava trazer obras recentes ou mesmo comissionadas por esses mesmos artistas; queríamos fazer uma exposição de cunho histórico e retrospectivo.

Em um segundo momento, ao começarmos nossas pesquisas diretamente com os artistas, muitas pessoas relatavam o final do Ato Institucional nº 5, em 1978, como algo que mudou o seu início de carreira e que possibilitou liberdades inimagináveis no começo da década de 1970. Aprofundando a pesquisa, notamos também como a eleição de Fernando Collor de Melo – o primeiro presidente eleito democraticamente por voto direto após o fim do governo militar no país – foi um episódio que deixou uma cicatriz: seu curto período de presidência foi interrompido pelo desejo de seu impeachment, em 1992. Em 1993, sobe ao poder o seu vice-presidente, Itamar Franco e há nova eleição no Brasil que irá eleger Fernando Henrique Cardoso, que já em 1994 dará início ao Plano Real, mudando a moeda e a economia brasileiras deixando marcas até o presente do país.

Eis que já estávamos a fazer a nossa própria “festa do estica e puxa”: e se os nossos “anos 1980” começassem em 1978 e se prolongassem até 1993? Que tal estes quinze anos em lugar daqueles dez que já pareciam tão asfixiantes para as pretensões desse projeto? Na dúvida, preferimos pegar, esticar e puxar.

Outro elemento essencial a este projeto é a sua amplitude geográfica: não fazia sentido perpetuar uma certa narrativa endossada na historiografia da arte no Brasil a respeito da centralidade das cenas artísticas do Rio de Janeiro e São Paulo. É inevitável – basta se fazer uma estatística a respeito dos artistas incluídos neste projeto – que estas duas cidades, os maiores centros econômicos do Brasil até hoje, tem uma grande importância e protagonismo nas discussões sobre artes visuais e cultura no país, mas o que era produzido em estados que não são parte do Sudeste brasileiro? O que produziam os artistas que habitavam lugares recentemente institucionalizados como em estados como Mato Grosso do Sul (1979), Rondônia (1981), Amapá, Roraima e Tocantins (todos criados em 1988)?

Outro desejo que caminhava paralelamente a este anseio era o de ladear obras produzidas em linguagens para além da pintura, mídia muito relacionada não apenas ao novo contexto político e hedonista que se vivencia no país, mas também associada à lenta solidificação de um mercado de arte. Se por um lado muitos dos artistas aqui reunidos ao menos começaram suas carreiras experimentando com o desenho e com a pintura – e esta última, inegavelmente, tem uma presença significativa na seleção de obras desta exposição –, outros autores construíram carreiras inteiras se utilizando da fotografia, do vídeo, do uso de novas tecnologias digitais e mesmo da construção de objetos. Enfocar o discurso sobre a produção durante os longos anos 1980 no Brasil exclusivamente na pintura parece uma abreviação de percursos muito mais sinuosos.

Partindo dessa diversidade de linguagens aqui reunidas, um passo atrás foi dado e nos perguntamos: se estamos lidando com uma década já esticada por nossos anseios curatoriais e trabalhando com pessoas inseridas não apenas nos sistemas institucionais das artes visuais, mas em circuitos paralelos como o design, a música, a publicidade, a televisão e o cinema, faria sentido apenas selecionarmos objetos vistos como “obras de arte”? Pensando na circulação das imagens nesse recorte histórico, há alguma dúvida de que as revistas com suas manchetes sensacionalistas, os discos de vinil e celebridades como Roberta Close, Pelé e Luiz Caldas tinham um alcance midiático maior do que qualquer um dos artistas visuais que aqui mostramos? Em lugar de seguirmos uma separação elitista e por vezes desconstruída pelos próprios artistas aqui reunidos entre as chamadas “cultura de massa” e “cultura erudita”, optamos por fazer uma pequena bagunça e estabelecer cruzamentos entre materiais de procedências e com estatutos de imagem dos mais diversos.

Enquanto trabalhávamos falando simultaneamente com centenas de artistas, discutíamos continuamente a respeito das formas de batizar não apenas esta exposição, mas também os seus distintos núcleos. Um primeiro levantamento de obras fez com que começássemos a pensar imagens e artistas em diferentes blocos narrativos. Algumas trajetórias faziam muito sentido ao lado de outras, assim como alguns artistas produziram imagens que os poderiam levar a diferentes camadas interpretativas. Em nossas discussões e em nossos momentos de lazer sempre nos perseguia a música pop; organicamente começamos a intitular os núcleos da exposição a partir de diferentes canções compostas e lançadas durante os anos 1980 no Brasil.

Na primeira versão desse projeto, o primeiro núcleo da exposição se chamava “Você me abre seus braços e a gente faz um país”, uma citação a “Fullgás”, composta por Antônio Cícero e Marina Lima, parte do álbum homônimo de 1984 da cantora. Entre muitas idas e vindas de discussões a respeito dos títulos dos núcleos, esses versos cresceram entre nós e nos levaram a outra conclusão: e se a exposição simplesmente se chamasse “Fullgás”? Se o leitor observar a trajetória deste que vos escreve, perceberá que tenho uma verdadeira adoração por títulos constituídos por apenas uma palavra. Há algo enigmático neles que os aproxima de um público não especializado assim como o nome de uma festa, de um seriado, de um filme ou, claro, do título de uma música.

Os cerca de quatro minutos desta faixa ecoam na memória social do Brasil há quarenta anos. Agora, após abrirmos a exposição, nenhuma palavra parece fazer mais sentido para batizá-la do que esta; trata-se de um jogo poético entre um tanque cheio necessário para construir uma nova nação e um elogio à brevidade da vida, suas dores e amores. A fugacidade desta longa década de 1980 e a montanha russa pela qual o Brasil passou ainda nos embala e nos inspira diariamente.

Olhando para os outros núcleos da exposição, nossos ouvidos tentarem reunir outras canções e artistas igualmente icônicos, mas cujas pesquisas apontaram para outras direções. “Que país é este”, primeiro núcleo da exposição que gira em torno das tensões entre o final da ditadura e o início da democracia no Brasil é intitulado a partir de uma canção do Legião Urbana, banda brasiliense de rock. O núcleo “Beat acelerado”, por sua vez, com todo o seu desejo de trazer ao público algo da euforia, do prazer e o desejo de afirmação do presente tão comuns a este momento foi batizado a partir de uma canção da banda paulistana Metrô.

O paranaense Arrigo Barnabé e suas “Diversões eletrônicas” dão o tom do terceiro núcleo da exposição sobre as muitas inovações tecnológicas que maravilharam e assombraram o mundo para além das televisões em cores. Viajando para o Mato Grosso do Sul, “Pássaros na garganta” é intitulada a partir de uma canção de Tetê Espíndola e reúne artistas e imagens que refletiram sobre as mudanças, tragédias e esperanças em torno do meio-ambiente e do clima. Por fim e com grande pitada de melancolia, “O tempo não para”, citação à canção de Cazuza, traz obras que pensam sobre a brevidade da vida, sobre a epidemia da AIDS no país e sobre a finitude da chamada Geração 80.

Uma vez que se solidificou a lista de obras e as seções que compõem “Fullgás”, foi uma experiência ímpar ver tudo se construindo fisicamente na colocação lado a lado de obras e em diálogo com as proposições arquitetônicas feitas por Juliana Godoy e de design pelo Estudio Margem. O que seria desta exposição sem a opção pela inserção de seu longo e praticamente ininterrupto carpete lilás? Esta cor tão presente em vinis, roupas e mesmo pinturas dos anos 1980 dá um tom imersivo à exposição permeado de discreto saudosismo.

Ao centro das salas expositivas, a equipe de arquitetura projetou uma série de mobiliários feitos de ferro e pintados em variações de cor que vão entre o rosa e o roxo. Eles foram pensados especialmente para reunir diversas obras de menor escala e, propositalmente, tal como um quarto de um adolescente em plenos anos 1980, sugerir uma maior fragmentação semelhante a um pequeno quebra-cabeça narrativo. Sobre estas estruturas vemos, por exemplo, posteres, desenhos, pinturas e registros fotográficos de performances convivendo ao lado a lado. Em alguns desses mobiliários há também espaço para a inclusão de objetos e televisores de tubo - aliás, optamos por apenas termos televisores vintage na exposição. Eis um encontro temporário permitido pela exposição e que permite com que, por exemplo, um capacete de Ayrton Senna esteja ao lado de obras da Dupla Especializada e do vestuário de uma das Paquitas. Ao lado deles, uma televisão de tubo traz um trabalho de Sandra Kogut. Será que o pega-estica-e-puxa foi longe demais?

Fora das salas expositivas dos CCBBs, geralmente em suas entradas e funcionando como uma espécie de acolhimento do público visitante, eis uma banca de jornal que funciona como uma máquina do tempo. Selecionamos revistas, livros e vinis que trazem ao público um pouco dos excessos discursivos dos quinze anos sobre os quais esta exposição se baseia – das páginas de revistas de humor àquelas que anunciavam com receio invenções como os computadores domésticos. Essa banca de jornal, mobiliário urbano que tende a desaparecer dos grandes centros urbanos devido ao uso crescente dos celulares, é, por si só, um objeto quase museográfico, um arquivo de si mesma – sempre, porém, radiante com uma bela pitada de nossos habituais lilases.

Uma vez que a exposição se inaugurou, nossas energias criativas foram depositadas nesta publicação que reúne não apenas documentação fotográfica sobre o projeto – trazendo imagens de sua primeira montagem, no CCBB Rio de Janeiro –, mas também abrindo novas portas interpretativas para a produção de arte e imagem durante os anos 1980. Optamos por ter dois cadernos de conteúdo: o primeiro deles é dedicado às fotografias panorâmicas da exposição feitas por Rafael Salim e pelo registro de todas as obras cujos direitos autorais nos foram cedidos pelos seus detentores. As fotografias aqui seguem uma certa narrativa espacial que respeita o trajeto do corpo do público na primeira montagem da exposição.

Por mais que os dez inéditos artigos aqui reunidos ecoem de alguma forma os cinco núcleos da exposição, eles possuem uma ordem própria que indica um movimento do macro para o micro; de discussões sobre os campos da História, da Sociologia e da Economia a um mergulho lento na Literatura, nas Artes Visuais, na ficção científica até chegarmos a reflexões mais existenciais e mesmo memorialistas da curadoria da exposição. Todos estes textos foram propositalmente comissionados por autores que vem não apenas de campos do conhecimento diferentes, mas que escrevem de forma muito dissonante. Não se trata, portanto, de uma publicação sobre “as artes visuais”, mas sobre a complexidade que envolve lidar com qualquer recorte histórico preciso.

Como não poderíamos evitar de fazer em um projeto com tamanho caráter enciclopédico, esta publicação também conta com verbetes biográficos sobre todos os artistas aqui reunidos. Se algumas destas pessoas possuem obras em grandes museus internacionais que fazem com que uma busca online traga milhares de resultados, outros artistas nunca mostraram suas pesquisas fora de sua cidade natal. Essa assimetria de institucionalizações faz com que consideremos que esta publicação possa vir a ser um importante espaço de pesquisa no futuro. Nada mais justo, portanto, que ao menos ofereçamos ao público uma introdução às suas trajetórias desejosos de que pesquisas profundas sobre alguns desses nomes surjam no futuro.

Por fim, este projeto conta com outro elemento igualmente importante: o Arquivo Fullgás, feito especificamente para as plataformas digitais do Youtube e do Instagram. Os artistas participantes da exposição foram convidados a dar uma entrevista online a respeito de suas trajetórias, as obras mostradas e suas impressões sobre os anos 1980. Com acesso gratuito na internet, essa interface se torna um importante documento para estudarmos a história da arte no país e aprendermos sobre artistas que tiveram oportunidades assimétricas.

Após lidar com o inesperado e triste falecimento de alguns artistas parte desta exposição nos meses subsequentes à sua abertura, este arquivo pode ser lido como um esforço contra o esquecimento e a passagem do tempo. Sabemos que não iremos vencer a certeza da morte, mas enquanto aqui estivermos, por que não fazer uma reverência a indivíduos que fazem arte há quatro décadas e são parte de uma geração anterior à nossa, a dos “baixinhos” que compõem as equipes de curadoria, arquitetura, design e parte da produção desta exposição? Reverenciar é o mínimo.

Sem mais delongas, preciso me despedir – nossa nave espacial, aquela anunciada em “Festa do estica e puxa”, está prestes a decolar novamente. Espero que este livro – e esta exposição – proporcione aos leitores momentos tão inusitados e polissêmicos como imaginarmos que, um dia, He-man pôde dançar um rock gravado pelo maestro Tom Jobim. Que criemos combinações curatoriais entre personagens de desenhos animados, ícones da música popular brasileira e passinhos.

Nave Fullgás se despede da Terra – beijinho, beijinho, tchau, tchau.


(texto feito para o catálogo de “Fullgás”, 2024)
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