O estranho desaparecimento de Vera Chaves Barcellos
[08 de março de 2023]
Oitenta e cinco anos não são oitenta e cinco dias. Esta exposição é uma celebração da artista Vera Chaves Barcellos. Nascida em Porto Alegre, sua pesquisa tem coesão e solidez ímpares, que a tornam fundamental para as artes visuais no Brasil. Mais do que isso, sua trajetória possibilita cruzamentos com discussões históricas e mais recentes sobre arte e imagem na região da América Latina e, de forma ampla e irrestrita, globalmente.
Com uma investigação que se inicia ao final dos anos 1950, Barcellos, assim como outros artistas de sua geração, inicia seu percurso experimentando com a pintura e o desenho. Em um contexto histórico permeado pela discussão sobre as fronteiras entre imagens que traziam o corpo humano em narrativas reconhecíveis e as potências formais da abstração, a artista trafega entre os campos e se interessa especialmente pelo lugar expressivo da cor, como se pode ver especialmente em suas pinturas dos anos 1960 que, não à toa, se intitulam “Abstração”.
Em um segundo momento, seu olhar se volta para outras tecnologias - em especial a gravura e sua relação com a repetição, serialização e uso de técnicas industriais. A partir destas experiências e das potencialidades do uso de uma mesma matriz, a artista propõe sequências de imagens especialmente por meio da xilogravura. A máxima matemática é desafiada: a ordem dos fatores altera o produto? Como uma série de imagens pode enunciar e, ao mesmo, confundir a noção de uma narrativa única? A partir do início da década de 1970, Barcellos se interessa cada vez mais pela fotografia e, com ela, percorrerá caminhos muito diferentes. Se alguns trabalhos como “On ice” e “Keep smiling” trazem imagens fotográficas que lidam com a pose, outras séries como “Memórias de Barcelona” e “Habitat” mostram uma relação com a ideia de viagem e a representação fragmentada da cidade.
Dos anos 1980 em diante vemos não só sua experimentação com a câmera de vídeo colocada perante diferentes corpos, mas também a forma cirúrgica como pinçou imagens (frames) de filmes célebres. “La definición del arte”, do começo dos anos 1990, traz o corpo da artista respondendo de maneira irônica ao excesso de teorização sobre as artes visuais. Seu corpo aparece novamente em “No a la guerra”, já da década seguinte, e faz um contraponto interessante com “Mulheres do mundo”, inserção da artista em uma linguagem mais documental. Estes trabalhos criam um paralelo interessante com a utilização que a artista faz de frames que, mostrados sequencialmente, remetem não apenas à ilusão do movimento do cinema e do vídeo, mas também às narrativas em quadrinhos e storyboards. Este é o caso de séries como “O grito” e “L’intervallo perduto”, baseadas em imagens de televisão, e “De película”, feita a partir de sua relação com o cinema.
Já em trabalhos como “Casasubu”, “Caixote em três tempos” e “Paço imperial” é perceptível como a manipulação da imagem, que já a interessava nos campos da fotografia e da gravura, irá ecoar na forma como softwares – tal qual o Photoshop – se transformaram em ferramentas que constroem novas realidades. A diminuição do tamanho da câmera – hoje facilmente operada por meio do celular – e suas novas possibilidades fotográficas e videográficas, com diferentes qualidades de imagem – do high definition ao low-tech –, contribuem com que a artista aprofunde esta pesquisa nas últimas duas décadas.
Como se pode perceber nestes parágrafos, se há algo que chama a atenção na carreira de Vera Chaves Barcellos é o seu caráter experimental. Por mais que possamos estabelecer diversas conexões entre as mídias aqui comentadas, a artista nunca se limitou a uma linguagem e se permitiu, de forma porosa, estar no lugar de aprendiz de novos estatutos das imagens.
Ao analisarmos as cerca de sete décadas de sua pesquisa, chamam a atenção algumas constâncias que estão para além destas mídias. Há um movimento pendular no seu olhar entre detalhe e conjunto com o qual a artista estruturou muitos de seus trabalhos; não é à toa que um dos mais icônicos seja intitulado justamente “Atenção”, convidado o público a perceber as nuances que se movimentam de uma fotografia em preto-e-branco para uma série de desenhos. O olhar da artista se movimenta entre o fragmento arqueológico e o seu sítio, entre um olhar que divide e aquele que adiciona todas as partes.
Essas formas de enquadrar imagens acompanham a importância que a cor tem para Barcellos: se muitos trabalhos produzidos nos anos 1970 tem o preto-e-branco como matéria, a cor salta aos olhos nas experimentações mais flamboyants dos anos 1980, como vemos em seus “Cadernos para colorir”. Há um olhar muito criterioso para as opções cromáticas – o preto-e-branco ajudam a criar narrativas mais discretas, coesas e, por vezes, pautadas na noção de documento fotográfico, ao passo que a aplicação da cor é um portal para a ficção, a afirmação do digital e suas fantasias.
As palavras desempenham um papel importante em sua pesquisa – seja na presença marcante de seus títulos, seja na forma como aparecem nos muros registrados em fotografias, no seu uso de painéis de LED ou nas legendas que acompanham seus livros, a artista testa os limites interpretativos da leitura. Por fim, Barcellos sempre dá especial atenção para o ato da instalação de seus trabalhos – das paredes para o chão, das impressões de caráter mais monumental aos livros que realçam a importância da velocidade individual do espectador que folheará suas páginas; mesmo que alguns trabalhos não se enquadrem explicitamente na linguagem da instalação, a forma como respondem à arquitetura e ao corpo do público é essencial.
Não nos querendo ater a uma leitura formalista da obra de Vera Chaves Barcellos, é importante observar o conjunto de obras aqui reunidas e refletir sobre alguns temas recorrentes ao seu campo semântico. O corpo humano – e seu interesse, como aqui dito, em fragmentá-lo – aparece recorrentemente em suas imagens; ele é pele, é enquadramento de retrato fotográfico, são as costas de um grupo de pessoas, são os “Manequins de Dusseldorf”. Este é um aspecto importante e talvez pouco comentado sobre a artista: seu interesse pelas imagens de grupos de pessoas e pela noção de massa. Isso se faz presente tanto pela literalidade com que os corpos surgem em suas obras, quanto pelas séries mais interessadas nas imagens de grandes cidades visivelmente afetadas pela ação humana.
Com um olhar sempre atento para as histórias, referências e especificidades desse campo de conhecimento que são as artes visuais, a obra de Barcellos convida estudiosos e o público não-especializado a realizar leituras que não sejam apenas pela chave conceitual das mídias e pela forma como a artista reverbera milênios de formas de se produzir imagens. Mais do que uma grande iconófila, talvez faça sentido afirmar que Vera é uma grande apaixonada pela vida e seu trabalho o reafirma de maneira discreta, mas contínua.
Nesta exposição na Fundação Iberê, suas obras foram divididas em oito salas que trazem trabalhos que vão, aproximadamente, da década de 1960 àqueles feitos especialmente para a exposição. O título desta mostra se apropria, com certa liberdade poética, do nome de um trabalho da artista datado de 1976: “O estranho des-aparecimento de VCB”. Naquele contexto histórico – o da ditadura militar no Brasil – essa frase poderia ser lida tanto como uma amarga memória às pessoas que desapareceram devido à violência estatal, quanto uma provocação em referência àqueles que tiveram de, momentaneamente, desaparecer do cenário brasileiro por perseguição política.
Batizando esta retrospectiva e ocupação de todo este prédio – que inclui, no quarto piso, em paralelo, uma curadoria da artista em torno de obras de Iberê Camargo –, essas palavras ganham outro contexto e são embebidas de ironia: VCB, ou seja, Vera Chaves Barcellos, não desapareceu – está viva, extremamente ativa e colaborativa em seus projetos. Por enquanto podemos rir do seu desaparecimento; ao mesmo tempo, melancolicamente, sabemos que um dia ele, assim como o de todos nós, chegará.
Não nos desesperemos – enquanto tivermos sua obra e pesquisa perante os nossos olhos, VCB, felizmente, nunca desaparecerá.
(texto relativo à exposição “O estranho desaparecimento de Vera Chaves Barcellos”, na Fundação Iberê Camargo, em Porto Alegre, entre 06 de maio e 30 de julho de 2023)