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O fascínio pelo fim


[09 de dezembro de 2012]



“E da parte de Jesus Cristo, que é a fiel testemunha, o primogênito dentre os mortos e o príncipe dos reis da terra. Aquele que nos amou, e em seu sangue nos lavou dos nossos pecados, E nos fez reis e sacerdotes para Deus e seu Pai; a ele glória e poder para todo o sempre. Amém” (Apocalipse 1:5-6)

Se a bíblia começa com o Gênesis, encerra com o Apocalipse. Esta palavra advinda do grego (apokalúpsis) significa o “ato de descobrir, descoberta; revelação”. Escrito por João de Patmos, se trata de um dos momentos com mais extensas descrições de imagens da bíblia. É neste capítulo que ocorre o célebre episódio do Juízo Final – Deus vem à Terra e julga toda a humanidade. Aqueles que tiveram um comportamento justo, ético e harmonioso para com o espaço e o próximo são alçados ao céu, ao passo que aqueles que se encontram no pólo oposto são jogados no inferno. Essa narrativa por diversas vezes foi ilustrada e é no lugar do mal, nas profundezas quentes e vermelhas daquilo que se imagina que seja o reinado do diabo, é que artistas visuais variados deram espaço à sua fértil imaginação.



Trata-se do momento que a toda a iconografia do memento mori preparava. Desde a Idade Média, mas com especial atenção após as reuniões do Concílio de Trento (1545-1563), muito comum foi a inserção da imagem de elementos que lembravam ao homem sobre a sua brevidade no mundo terrestre. Enquanto vivos, deveríamos ter o comportamento mais correto possível a fim de que nossa alma não fosse lançada para os terrenos subterrâneos. Como a própria tradução da frase aponta, portanto, se trata de um eterno “lembrar da morte” através, geralmente, de objetos que remetem à passagem do tempo: velas, ampulhetas, caveiras e frutos podres cumpriam esse papel didático.

Através, portanto, do Apocalipse temos uma das diversas leituras que a ideia de “fim dos tempos” proporciona. O fim da existência de um espaço de convívio terrestre é já anunciado no fim singular de cada ser humano. A minha morte, então, já é um prelúdio do fim dos tempos, ou melhor, do fim do meu tempo. A cultura ocidental irá problematizar essa questão; se na Idade Média, havia espaço para os livros de oração, encomendados por integrantes de abastadas cortes e que proporcionavam uma disciplina espiritual, no mundo contemporâneo tudo é válido para que no dia do julgamento divino nossa alma vá para o céu – exorcismos, sessões de descarrego, penitências e dízimos seguem presentes tanto entre católicos, quanto em evangélicos.



Lars von Trier batiza seu filme por “Melancolia”. Um planeta irá se chocar sob a terra e a câmera acompanha o desenrolar de dias de uma pequena família. Enquanto uma mulher tenta desesperadamente buscar respostas e soluções que apenas frisam nossa pequenez perante a existência, sua irmã, uma espécie de silenciosa profetisa, lida de modo cético com a certeza da destruição. Mesmo dotados dos mais diversos instrumentos de estudo do mundo, nada será capaz de dominar e enclausurar esta catástrofe – podemos correr, mas não conseguiremos nos esconder. Já em “O sacrifício”, de Andrei Tarkovskiy, temos um confuso anúncio de um final dos tempos. Seja sonho, seja concretude, o filme é permeado por diversas referências explícitas ao cristianismo: desde uma personagem central chamada Maria até a insistência em citar e mesmo debater a “Adoração dos magos”, de Leonardo da Vinci. Se podemos interpretá-lo como uma narrativa acerca da possibilidade de se sacrificar em detrimento de um todo (da humanidade), tudo começa muito antes, no nascimento do grande mártir, de Jesus Cristo.



Se a pintura e o cinema, como esta mostra de filmes demonstra, respondem por vias diversas o problema do fim dos tempos e da vida, fico a me perguntar como um grande teólogo como Santo Agostinho veria esse tópico dentro da chamada “cultura de massa”. Em 1987, o R.E.M. grava seu “It’s the end of the world as we know it (and I feel fine)”. Versos rápidos, uma música desafiadora para ser cantada mesmo para os educados no inglês e um “I feel fine” (“eu me sinto bem”) que quebra com a aura cristã de qualquer apocalipse. Por fim, já em 2011, ano de grande disseminação da profecia maia de que o mundo acabaria em 21 de dezembro de 2012, Britney Spears lança um single chamado “Till the world ends”. No videoclipe, enquanto meteoros e prédios caem, ela e um extenso grupo de jovens suados dança abaixo da terra, em um cenário rubro, no que seria a rede de esgoto. Os demônios das iluminuras medievais foram convertidos em jovens atléticos e luxuriosos; os gritos das torturas eternas viraram um refrão repetitivo e entoado de modo uníssono. Prenúncio da certeza do inferno futuro ou refúgio da catástrofe com a esperança de uma vida pós-apocalíptica?

A resposta é incerta, mas o fascínio que o receio do fim proporciona parece ser intrínseco àquilo que é humano.


(texto escrito para o catálogo da mostra de cinema “Fim dos tempos”, realizada na Caixa Cultural Rio de Janeiro entre 07 e 21 de dezembro)
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