O lugar a que se volta é sempre outro
Sonia Andrade
[26 de outubro de 2019]
Em um dos encontros com Sonia Andrade para discutir esta exposição, ela disse ter se lembrado de frases que poderiam nos ajudar quanto à direção de seu título. Tratava-se de palavras escritas por Álvaro de Campos no poema intitulado “Là-bas, je ne sais où”.[1]O autor discorre sobre uma viagem, uma estação de trem, partidas e chegadas – seus versos encontram um belo eco na canção “Encontros e despedidas”, de Milton Nascimento. Ao final do poema de Campos, alguns versos chamavam a nossa atenção: “Partir! / Nunca voltarei. / Nunca voltarei porque nunca se volta. / O lugar a que se volta é sempre outro, / A gare a que se volta é outra. / Já não está a mesma gente, nem a mesma luz, nem a mesma filosofia”.
Parte dos trabalhos aqui mostrados já estavam definidos, mas ao ler estes versos, sua coexistência no espaço ganhou outro sentido. Como a própria artista gosta de dizer, o tempo é o elemento essencial de sua produção e este poema versa a seu respeito. O texto do poeta reflete sobre o retorno e atualiza as palavras de Heráclito sobre o corpo, o rio e o tempo: não se entra duas vezes em um mesmo lugar, assim como uma artista e o espectador não veem da mesma forma um mesmo trabalho em sua extensão temporal.
Essa exposição reúne trabalhos que tanto possuem diferentes relações com a noção de tempo, quanto foram criados em diferentes momentos da pesquisa de Sonia Andrade. Se alguns deles já são conhecidos daqueles que acompanham sua trajetória, outros foram iniciados há décadas e agora tomaram uma forma final para migrar da casa-ateliê para o espaço expositivo. Por fim, outras obras foram pensadas especialmente para a ocupação deste espaço. Optamos por não fazer uma exposição dedicada unicamente ao vídeo – a mídia mais lembrada devido à sua pioneira atuação junto à videoarte e videoinstalação. Pareceu-nos justo pensar uma equação de linguagens que lidam com o tempo de diferentes maneiras: a fotografia, o desenho, a escrita e a criação de objetos que vem de sua própria coleção de coisas.
“Naufrágio” é a instalação que ocupa a sala maior da Galeria Athena – seria um aquário ou uma caixa? Solitário no centro do espaço, o objeto reúne pedaços de vidro, cacos e peças inteiras de um conjunto de porcelana japonesa. Quem e como naufragou? Não temos essa resposta, mas a instalação parece estar em diálogo com a tradição do memento mori: imagens alegóricas que nos lembram da morte. Passa o tempo, ficam os objetos, esvai a água e nos tornamos pó. Para percebermos a presença da poeira, nada melhor do que um espaço onde o vazio é o elemento principal.
Nas outras duas salas da galeria, estão reunidos trabalhos de diferentes escalas e registros. Como elemento comum, por um lado podemos notar a importância da relação entre imagem técnica e sequência. Em “O braço da artista” vemos o seu corpo fotografado inúmeras vezes e mostrado como uma folha de contato fotográfico. Seu braço se flexiona e parece brincar com a força de qualquer corpo humano. Quando relacionamos esse trabalho com sua trajetória, é inevitável lembrar de vídeos como “A morte do horror” em que outras ações banais são repetidas e, quando sequenciadas, nos levam a pensar sobre as situações propostas: fragilidade, grito, silêncio... gênero? Talvez sim, mas nunca de forma panfletária. A fotografia tenta congelar e documentar o tempo, mas a artista deseja explorar as possibilidades ficcionais dadas por aquilo que lhe é mais comum: o seu próprio corpo.
A sugestão de narrativas pelo sequenciamento de imagens é algo que se faz presente em outros dos trabalhos aqui mostrados e que possuem um apelo mais artesanal. Em “Sob os céus”, a artista recortou fotografias produzidas na Europa durante os anos 1979 e 1984 onde a presença do céu era notável. A partir desse material, mosaicos de céus foram criados e podem ser vistos como um inventário de cores, temperaturas e desenhos – coladas uma ao lado da outra, essas fotografias parecem compor um calendário e podem se aproximar da noção de um diário: coleções de céus, coleções de dias e noites.
Algo semelhante pode ser visto na série de livros também mostrada na exposição. Cinco pequenos livros trazem conjuntos de imagens que, no passar das folhas, criam narrativas com interesses diferentes – cada uma dedicada à análise da linguagem escrita: acentuação, alfabeto, alfabeto de letras retiradas, pontuação e letra. Cada livro é uma mostra e ao mesmo tempo dissecação de formas que, por meio do desenho, compõem a escrita da língua portuguesa. O olhar de Sonia Andrade possui essa precisão cirúrgica que pode ser notada desde os inaugurais desenhos que realizou em 1972 e que são mostrados pela primeira vez nessa exposição. Riscos, manchas de guache, formas que lembram roldanas e pedaços de letras – a artista encarou a folha branco como desafio propositivo e compôs de maneira aparentemente despretensiosa suas primeiras imagens.
Todos nós – o público e a artista – voltamos nosso olhar para essas folhas de papel que não são aquelas mesmas de quarenta e sete anos atrás. Muitas voltas deu o mundo, muitas voltas a artista deu no mundo, muitas voltas as suas imagens deram no mundo e muitas voltas o público poderá dar dentro do seu mundo.
Façamo-lo antes do naufrágio chegar e enquanto ainda podemos chegar nesse lugar que, quando se volta, é – felizmente! – sempre novo.
[1] Em português podemos traduzir por “Lá, não sei onde”.
(texto curatorial relativo à exposição “O lugar a que se volta é sempre outro”, de Sonia Andrade, na Galeria Athena, no Rio de Janeiro, aberta entre 26 de outubro de 2019 e janeiro de 2020)