O teatro do terror
Ismael Monticelli
[22 de setembro de 2024]
Há uma palavra no título desta exposição que, de alguma forma, dialoga com a pesquisa de Ismael Monticelli de forma precisa: “teatro”. Não precisamos ser profundos conhecedores de seu percurso para, após vermos alguns exemplos de suas obras, associarmos sua prática com certa teatralidade – seja pelo interesse pela instalação, seja pela insistência na utilização de materiais que, vistos de perto, denotam seu caráter provisório. Há uma profundidade cada vez maior em seu interesse por uma visualidade que remete a cenários e que convida o espectador a caminhar por dentro de seus ambientes.
Longe do palco italiano, o artista convida o público a observar e caminhar dentro de teatros provisórios – abandonados, talvez? – que mais se assemelham à tradição do teatro de arena. Um olhar externo que veja nossos corpos caminhando dentro de seus trabalhos talvez nos associe mais rapidamente aos corpos de atores que vagam por seu universo; mais do que espectadores, seríamos vistos como personagens de suas tramas.
Além da espacialidade de seus projetos, há outro elemento que conecta sua pesquisa: seu interesse pela noção de narrativa, invenção e ficção. Mesmo que geralmente parta de fatos ricamente documentados, Monticelli não se interessa de forma alguma pelas possibilidades que certa produção de arte pode ter de documentar algo ou revelar “verdades” sobre tópicos espinhosos; tenho a impressão de que, para ele – brincando com o nome do famoso festival de documentários – “é tudo mentira”. É a noção de absurdo e a fricção entre lugares, imagens, palavras e ações discrepantes, trans-históricas e muitas vezes absolutamente nonsense que o motivam.
Acontece que alguns fatos são tão absurdos que beiram as páginas de um inesperado livro de ficções. Refiro-me à ocupação e destruição de parte do patrimônio histórico-artístico brasileiro, desencadeada no dia 08 de janeiro de 2023, quando um grupo de ativistas de extrema-direita invadiu o Congresso Nacional, o Palácio do Planalto e o Supremo Tribunal Federal. Não apenas elementos arquitetônicos foram destruídos, mas diversos objetos das coleções federais foram danificados de forma até mesmo irreversível. A proliferação de imagens documentais da destruição e de relatos em primeira pessoa foi imensa; centenas de pessoas foram presas, e parte dos vereditos judiciais sequer chegou a uma conclusão.
Ao revermos essas imagens traumáticas, algo chama a atenção e pode ser interpretado como um eco do ataque ao Capitólio dos Estados Unidos, quase exatamente dois anos antes: a carnavalização da destruição. Se lá Jake Angeli chamou a atenção por invadir o prédio com o rosto pintado com as cores da bandeira dos Estados Unidos e por trajar um chapéu de pele com chifres, em Brasília as pessoas estavam fantasiadas com bandeiras-cangas do Brasil e chegaram a defecar em diferentes salas. Tudo isso, em ambos os casos, foi transmitido via internet, gerando material ao vivo que demonstrava diferentes pontos de vista de uma energia coletiva que oscilava entre a festa e o desejo de destruição — não apenas dos “outros”, mas de tudo e qualquer coisa. Com todas as diferenças culturais e históricas entre ambos os países, parecia ser necessário para os manifestantes “botar abaixo” os patrimônios para, do vazio, construir um projeto revisionista de nação — por mais que se utilizassem de ícones tão antigos e caros à invenção das nações no pleno século XIX.
Assim como um DJ, o que o artista propõe é uma colagem, uma junção ou, em termos da produção musical, um mashup entre diversas referências. Se os crimes realizados em Brasília são um ponto de partida, este se sedimenta no interesse de Monticelli pelas muitas histórias da arte, especialmente pelos fantasmas dos modernismos na contemporaneidade. Eis, portanto, uma oportunidade de cruzar a capital federal com o Futurismo, movimento de vanguarda italiano que constantemente fazia apologia à guerra. Fortunato Depero, artista integrante do movimento, e sua tapeçaria “Guerra = festa”, de 1925, é um dos ingredientes essenciais para esta proposta de composição.
Ao observarmos as formas aqui reunidas, o cromatismo — tão importante para esta obra do italiano e, de modo geral, para diversos fenômenos culturais no Brasil — chama a atenção. Lembro, por exemplo, dos famosos carnavais modernistas desenhados por Lasar Segall na Sociedade Pró-Arte Moderna, em São Paulo, criada em 1932. Assim como fantasias de Carnaval, os materiais aqui estão fadados à sua efemeridade: feitos de papelão reaproveitado e tinta acrílica, são figuras que explicitam sua fragilidade e a ameaça de destruição. Uma inundação ou incêndio — catástrofes que infelizmente assombraram recentemente diversos museus no Brasil — rapidamente destruiriam essas peças.
Ao caminhar entre essa cena, atravessando o mezanino do Museu Nacional de Brasília, o público pode ver o seu verso — mesmo que sejam feitas em tamanho real, nenhuma dessas figuras aqui tem qualquer intenção de simular um corpo humano de forma fidedigna. Tudo é esquemático, planificado, exagerado e, claro, encenado. Mais irônico ainda é pensar que esse trabalho ocorre em um museu não apenas dedicado à nação, mas — como grande parte do patrimônio arquitetônico de Brasília — desenhado por Oscar Niemeyer, o mesmo autor dos prédios que foram depredados. Além disso, o nome do museu faz referência a Honestino Guimarães, estudante que é desaparecido político desde 1973 devido à sua participação nos movimentos de resistência à ditadura militar no Brasil.
De protesto em protesto, de manifestação em manifestação, as massas, anônimas ou identificáveis, constituem o Brasil e seu longo anseio por participação democrática na esfera pública. Com mais pitadas de terror do que de "terrir" — termo utilizado para se referir à mistura de terror e comédia na ficção —, Ismael Monticelli parece nos lembrar de forma amarga que a estabilidade da democracia no país é dialógica à certeza da permanência dessas figuras de papelão: qualquer movimento brusco pode derrubá-las.
Derrubar obras de arte e/ou levar ao desaparecimento de pessoas é, infelizmente, fácil; tudo que existe materialmente está fadado a isso. Fazer com que a memória coletiva esqueça esses fatos e tentar controlar suas narrativas futuras — eis uma tarefa já impossível. Assim como uma massinha de modelar, o artista vai manipulando novos mundos a partir dos muitos cacos espalhados por aí.
Sentemos na plateia e aguardemos seus próximos atos.
(texto feito para a exposição “O teatro do terror”, de Ismael Monticelli, no Museu Nacional da República, em Brasília, em 2024)