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Os meios do caminho

Renata de Bonis
[14 de março de 2014]




Pode-se começar esse texto com uma citação advinda da cultura brasileira: “No meio do caminho tinha uma pedra / tinha uma pedra no meio do caminho”. Seria possível articular a poesia de Carlos Drummond de Andrade com a residência artística de Renata De Bonis na cidade de Skagaströnd, na Islândia? De quais modos o “poeta das sete faces”, um dos pais da poesia do século XX no Brasil, poderia ir de encontro a esse país por vezes visto como ícone de tudo aquilo – gélido, pequenino e com montes brancos de neve – que seria destoante da imagem da brasilidade? Três são algumas das vias que podem conectar ambos na sua distância geográfica e histórica através dos mais recentes trabalhos da artista.

Skagaströnd, cidade com cerca de 500 habitantes, está situada na região norte da Islândia, ou seja, estamos a falar do norte do norte da Europa. Basta buscar por algumas imagens do local e seremos presenteados com a visão de umas poucas habitações cujo grande ponto de fuga é o monte Spákonufell e seus 646 metros de altura. Haveria como ter pedra maior do que essa perante o nosso olhar e dia-após-dia? A série de pinturas “For those who perished and for those who survived” reflete sobre a permanência e aparente inércia desse grande bloco de natureza. Se há alguém que observou os ciclos da vida humana em torno da região, os perecimentos e sobrevivências contidos nesse título, essa é a montanha; agora transformada em, mais que paisagem, em personagem, ela “dá as caras” de diferentes modos, com silhuetas e sfumatos distintos.




As outras pedras as quais podemos nos referir são bem menores e estavam sobre o chão. Teriam elas um dia também sido pedregulho? Explorando diariamente o território um tanto quanto diferente de sua São Paulo natal, Renata selecionou uma pedra por dia e se incumbiu de dedicar uma pintura a cada. Esses fragmentos se convertem em uma galeria de imagens que aparentemente se repetem. Porém, o título da série, “Monolito”, está no singular e o que a artista sugere é que o espectador se aproxime de cada um desses pedaços e perceba suas sutilezas e diferenças de um para o outro. Trata-se de um exercício de contemplação da diversidade de construção formal tanto da pintura, quanto, saindo do simulacro, da complexidade geológica da Terra. A paleta se repete, mas não entedia o olhar. Ocupando quadrados ligeiramente irregulares dentro das folhas de papel, lembro de uma impressão fotográfica, tal qual uma polaroid. Será que, uma vez mais, não poderíamos transformar esses estudos de natureza-morta em uma galeria de retratos?

Por fim, dessa narrativa anterior, um encontro que gerou um trabalho em diferente linguagem. Ao resgatar uma pedra e leva-la para o espaço aquecido do ateliê, possivelmente devido ao choque térmico, esta racha e se parte em duas. De volta ao Brasil, ambas as partes são vertidas em bronze e sacralizadas como escultura. “The pursuit of the whole” (“A busca pelo todo”) versa sobre essa incompletude daquilo que é humano e de sua fé de que outra pessoa ou outro espaço será capaz de nos transformar em uma rocha. Podemos ler, portanto, sempre através de um ponto de vista romântico – seja no sentido da palavra relativo à pintura que recebe essa alcunha e que problematiza o lugar do homem em sociedades cada vez mais industriais, seja quanto à indústria cultural em que o termo pode querer se referir a aquilo que alguns chamam de “amor”.




Essa rachadura nos leva, mais uma vez, para aquele “meio do caminho” criado por Drummond. Lembro-me, então, que seu poema foi publicado pela primeira vez na Revista de Antropofagia, em 1928, organizada por Oswald de Andrade. Anos depois, em 1930, sairia no primeiro livro que reuniu poemas seus. Penso que na companhia do grande antropófago da cultura brasileira, cabe esse espaço para cruzarmos Islândia e Brasil, Skagaströnd e a mesma Sampa onde foram impressas as edições da revista.

Colocando mais molho nesse caldeirão antropofágico, são essas rachaduras também que aparecem em “Jóga”, videoclipe dirigido por Michel Gondry e do talvez maior ícone da cultura islandesa pelo mundo, Björk. Após falar das “paisagens emocionais” que a confundem, a cantora afirma o seu “estado de emergência” e diz que “é onde eu quero estar”. Creio, então, que seja esse mesmo lugar que a pesquisa artística de Renata De Bonis deseja ocupar: num espaço entre, naquela brecha que dá existência à rachadura. Entre o lá e o cá, entre o Brasil e o “exterior”, entre a experiência e a lembrança, ela propõe diferentes modos de se recodificar a existência.




A Islândia, mais do que uma série de “pedras no meio do caminho” se constitui, em si própria, como um dos meios do caminho de sua trajetória enquanto artista; é uma necessidade para se fazer arte. Essa terra não será apagada, pois já se verteu em objeto artístico e, como diria Drummond, “nunca me esquecerei desse acontecimento / na vida de minhas retinas tão fatigadas”.


(texto para a exposição "Uma pedra por dia", de Renata De Bonis, na Galeria Laura Marsiaj, no Rio de Janeiro, entre os dias 18 de março e 23 de abril)
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