Ouro de tolo
Zé Carlos Garcia
[18 de maio de 2017]
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Ao se observar o percurso de Zé Carlos Garcia, temos à nossa frente uma pequena Arca de Noé; basta passar os olhos pelas imagens de seus trabalhos e somos enfrentados por porcos, pássaros, abelhas e pragas. Nenhum deles, porém, se apresenta por um duplo tridimensional ou através de uma representação mimética dada a partir de um modelo vivo. De vivo, em verdade, seus animais têm muito pouco, já que parece interessar ao artista justamente a fragmentação dos corpos e os resquícios de uma mutilada arca.
Esse dado é visível em um dos dois trabalhos centrais na presente exposição. De uma longa estrutura de madeira semelhante a um mastro, preso à parede, saem distintos tons de crinas de cavalos. Se o artista aponta de modo imponente para o alto, ao mesmo tempo nos faz olhar para o chão criando uma anti-monumentalidade. No lugar de uma estrutura de ferro soldado e do vento que balançaria a superfície da bandeira, somos desafiados com um mastro feito a partir de encaixes de diferentes partes e uma amálgama de pelos de animal que vão de encontro à poeira. Não vemos bandeiras, mas o esqueleto de suas estruturas e a presença parcial desses equinos nos faz lembrar da iconografia militar.
Cavalos e estandartes são imagens que se complementam e permanecem em nosso ideário tanto de celebrações públicas, quanto de movimentos de invasão territorial. Ambos são meios; um de transporte do corpo humano, o outro de translado da identidade de um coletivo. O outro elemento evocado por Zé Carlos Garcia no segundo objeto aqui apresentado também parte desse campo semântico, mas se faz destoante devido à sua habitual inércia: o monumento em pedra.
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O caráter ascensional de obeliscos e pelourinhos é aqui transposto para a madeira. Enquanto a escala gigante das torres de pedra projetadas para o espaço público é reduzida para o espaço da galeria, sua imponência simbólica ainda se faz presente através da ponta de ouro maciço dessa escultura. O mesmo material que constitui essa superfície pontiaguda - capaz de grandes derramamentos de sangue – foi o principal incentivador desses mesmos duelos. Poder bélico e ganância advém, nesse ponto de vista, da mesma tendência do humano à ostentação. Quando o artista opta por inserir movimento a essa estrutura de madeira, a lembrança militar que a imagem poderia proporcionar, literalmente, se desestabiliza. Como reverenciar um objeto que dança perante o nosso olhar tal qual um joão-bobo? Até que ponto todo homem que busca esta mínima parcela de ouro pontiagudo não é, na verdade, um grande tolo?
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Lembrando das palavras de Raul Seixas na canção “Ouro de tolo”, de 1973, Zé Carlos não é daqueles que está “no trono de um apartamento / com a boca escancarada / cheia de dentes / esperando a morte chegar”. Ele age e dialoga com os anseios do presente através da escultura, da imagem e de apropriações formais felizmente não panfletárias.
Para fincar novas imagens em nossas memórias, é preciso que o artista também mutile nossas culturas materiais e, no lugar do desejo de permanência típico das iconografias políticas, opte pela transitoriedade.
(texto relativo à exposição "Finca", de Zé Carlos Garcia, na Amarelonegro Arte Contemporânea, no Rio de Janeiro, entre 10 de março e 03 de abril)