Passaic: o museu desordenado de Robert Smithson
[05 de dezembro de 2014]
A fotografia torna a natureza obsoleta. O meu pensamento em termos de site e de non-site me faz sentir que não há mais necessidade de se referir à natureza. Estou completamente absorvido em fazer arte e isso é principalmente um ato de observação, uma atividade mental que aponta diretamente para sites distintos.[1]
Como o próprio título indica nas entrelinhas, “Um passeio pelos monumentos de Passaic”, escrito pelo artista americano Robert Smithson, trata-se de um relato de experiência. Publicado na Artforum em dezembro de 1967, o texto está baseado num retorno do artista à sua cidade natal. Sua narrativa é construída por intermédio de duas mídias. Pela linguagem literária o autor recodifica sua experiência de percorrer um espaço urbano abandonado e transformado em subúrbio. Através da fotografia os monumentos citados em seu título ganham visualidade.
Duas são as citações que antecedem sua escrita. A segunda é de Vladmir Nabokov. Creio que, a partir desta frase, podemos iniciar as possíveis leituras deste dispositivo centrífugo[2]: “Hoje em dia nossas câmeras pouco sofisticadas gravam a seu modo o nosso mundo agrupado e pintado com pressa”.[3] Além da referência óbvia à sua própria utilização da reprodutibilidade técnica, podemos entender esta frase sob uma segunda perspectiva, substituindo “nossas câmeras” por “nossos indivíduos”; tomando-nos como igualmente pouco sofisticados, podemos pensar a utilização desta frase por Robert Smithson como uma auto-reflexão. De certa forma, ao inseri-la antes da construção de seu texto (por mais que estes fragmentos já façam parte de sua teia literária), o autor já dá sinais de que compreende as experiências muito intensas para as limitações intrínsecas à opção pelo uso de qualquer linguagem.
Trata-se dum embate entre experiência e técnica, fenômeno e número. O texto de Smithson é uma tentativa de inserir dentro duma outra espaço-temporalidade (recodificar) sua experiência pessoal com a paisagem de Passaic. Ele não é composto com o intuito de transcrever objetivamente o experimentado fisicamente; não se trata dum manual para leitura de suas obras visuais[4]. O artista deseja experimentar a escrita assim como ele pôde explorar os fragmentos de Passaic. Logo, o texto é erguido de forma densa, ao mesmo tempo em que consegue criar uma coerência levemente aristotélica na narrativa. Inicia-se com a compra de um New York Times e do livro “Earthworks”. Ele percorre os olhos pelas notícias da área de artes visuais, captando fragmentos de frases, criando novas orações a partir da colagem destes trechos. Seus “olhos foram tropeçando pela folha de jornal”[5], da mesma que seu contato para com Passaic dá-se através de fricções.
Uma reprodução chama a sua atenção. Esse estado de simulacro, ou seja, as qualidades visuais que denunciam “Paisagem alegórica”, de Samuel Morse como uma tosca reprodução de jornal, sensibilizam o olhar de Robert Smithson. O que interessa aqui não é o estado de ruínas representado através da pintura por Morse, mas sim a materialidade frágil das páginas do jornal, seu aspecto destrutivo. Perguntado em entrevista sobre as relações possíveis entre destruição e seu trabalho como artista, Smithson responde categoricamente que “O mundo está se destruindo lentamente. A catástrofe vem subitamente, mas lentamente”. [6]
Esta frase implica uma outra interpretação de seus textos e fotografias. Poderíamos afirmar que, ao percorrer a paisagem de Passaic, as registrando incessantemente através de sua Instamatic 400, o artista estaria propondo uma reconciliação entre homem e natureza – como na pintura estilisticamente tida como “romântica”. Um bom artista para confrontarmos com o americano é Caspar David Friedrich. Nos detendo sobre “As ruínas de Eldena” (imagem 2) percebemos qualidades visuais também presentes em Morse: os detritos das construções antigas e uma população arbórea que disputa espaço na pintura com estes prédios construídos pelos homens. Num momento historicamente peculiar a Friedrich e Morse, ou seja, pré-revolução industrial, quando as luzes do Iluminismo iniciam a cessar, estas obras podem ser lidas como um último suspiro do indivíduo para com a possibilidade de harmonia com a Natureza (no sentido mais autoritário do termo).
Porém, ao lermos alguns textos de Robert Smithson, percebemos que o autor não propõe este reencontro pretensamente harmonioso entre os pólos. Este já não é mais possível. O que deve ser fruído é o dejeto duma modernidade que já nasceu fracassada. Este é o caso de Passaic. Cidade natal de Smithson, seu território foi permeado por grandes construções, com seus materiais detalhadamente descritos em seu texto: aço, madeira, ferro e concreto – proto-esculturas construtivistas. Mas ao serem abandonados pelos homens, tornando-se centro de lugar nenhum, estes cenários construídos rumo a um tempo dominado pela dimensão técnica, ficam enferrujados, indo para um porão e recebendo o título de sub-úrbio. É sobre esta ferrugem que a fruição de Robert Smithson se debruça. Justamente por isso ele irá afirmar que as paisagens de Passaic parecem fotografias; assemelham-se a vestígios de um tempo longínquo, inclusive já ganhando o status de monumento. São “futuros abandonados”.[7]
A construção da imagem fotográfica de Robert Smithson também tem um quê de oxidação. A assimetria é visível, como se a paisagem de Passaic tivesse controle sobre a Instamatic 400, e se espalhasse aleatoriamente pelo material sensível à luz. A caixa de areia não está posicionada no centro do quadro, assim como as sombras da ponte que ele percorreu dão a impressão desta ser maior e um tanto quanto obscura. O fato de estas imagens serem preto e branco realça esse aspecto fantasmático da fotografia, além da potência estética dos grãos, tão caros à utilização deste tipo de filme. Como ele mesmo escreve, “era isso que estava lá”[8]; as imagens não são construídas a partir dum longo processo de disegno interno. Smithson estaria mais ligado a uma tradição do colore, do impulso da construção da imagem através de seu instinto sensível – ele “tirava um instantâneo após instantâneo”.[9]
Para o artista, é necessário que haja um desprendimento com a experiência de ateliê e com a finitude do objeto de arte. Trabalhando com a terra, criando a denominada land art, o homem amplia seu espaço de experiência da estesia, reabilitando seus sentidos. Como afirma Leila Danziger, a poética de Robert Smithson pode ser relacionada à entropia, “... a idéia de que a desordem não é mais decorrente da ordem, não se trata mais de uma degradação no sentido platônico e sim de uma desordem constitucional. Assim a desorganização – de degradação e morte num sistema – passa a acaso criador”.[10]
Nossa única saída é aceitarmos a efemeridade à qual estamos (e sempre estivemos e sempre estaremos) sujeitos. Do pó viemos, ao pó iremos. Por mais que a fotografia tenha a pretensão de solidificar um momento, ela também possui uma materialidade e, assim como estes objetos de um “passado futuro”, ela também deteriorará. A iconoclastia será inevitável. Ele diz, sobre o cinema: “... mais cedo ou mais tarde, o próprio filme iria estragar ou se perder e entrar no estado de irreversibilidade (...) A falsa imortalidade do filme dá ao espectador a ilusão de controle sobre a eternidade...”.[11]
Fim das utopias modernistas: “... o mundo é um museu”[12], que está em desordem.
[1] SMITHSON, Robert. “Discussões com Heizer, Oppenheim, Smithson” in: COTRIM, Cecília e FERREIRA, Glória (Org.) Escritos de artistas anos 60/70. Rio de Janeiro: Zahar, 2006, pág. 280.
[2] Definição proposta por Jean-Pierre Criqui: “C´est un dispositif centrifuge qui met l´accent sur le non-visible – présent dès le titre générique de ces oeuvres, rappelons-le, par l´homophonie em anglais entre site et sight, entre ‘site’ et ‘regard’ – et brouille lês limites du musée et du monde...”. “Ruines à l´envers” in: Cahiers du Musée national d´art moderne. Paris: 1993, pág. 12.
[3] SMITHSON, Robert. “Um passeio pelos monumentos de Passaic”. In: Jornal de metafísica, literatura e artes. Rio de Janeiro: 2001, pág. 45.
[4] “J´ai davantage pensé à l´écriture comme um matériau à assembler que comme une sorte de guide pour l´analyse. (...) J´étais intéressé par lê langage em tant qu´entité matérielle (...) en tant que ‘matière imprimée’ de l´information douée d´une certaine présence physique. J´ai contruit mes articles de la même manière que j´ai construit mês oeuvres”. SMITHSON, Robert apud CRIQUI, Jean-Pierre, idem, pág. 7.
[5] SMITHSON, Robert. “Um passeio pelos monumentos de Passaic”, idem, pág. 46.
[6] SMITHSON, Robert. “Discussões com Heizer, Oppenheim, Smithson”,idem, pág. 286.
[7] “Passaic parece cheia de ‘buracos’, comparada com a cidade de Nova Iorque, que parece compacta e sólida, e esses buracos em certo sentido são os vazios monumentais que definem, sem tentar, os traços de memória de uma série de futuros abandonados”. SMITHSON, Robert, “Um passeio pelos monumentos de Passaic”, idem.
[8] Idem.
[9] Idem.
[10] DANZIGER, Leila. Corpos de ausências: Berlim e os monumentos a Auschwitz. Tese de doutorado do Programa de Pós-Graduação em História Social da Cultura. Rio de Janeiro: PUC-RJ, 2003, pág. 94.
[11] SMITHSON, Robert. “Um passeio pelos monumentos de Passaic”, idem, pág. 47.
[12] SMITHSON, Robert. “Discussões com Heizer, Oppenheim, Smithson”, idem, pág. 280.
(texto publicado originalmente no livro "Arte e/ou arte institucional", organizado por Carolina Barberan e Daniel Belion, em 2009)