Pintar é soprar
MAHKU (Movimento dos Artistas Huni Kuin)
[13 de outubro de 2022]
Parece oportuno começar esse texto com a lembrança de uma conversa que aconteceu em Munique, em 2021. Ela aconteceu na abertura para imprensa da exposição Sweat, na Haus der Kunst, que tive a oportunidade de curar junto a Anna Schneider. Estávamos rodeados de jornalistas, em sua maioria, alemães. O Movimento de Artistas Huni Kuin (MAHKU) era parte da exposição, porém, devido às restrições de locomoção internacional decorrentes da COVID-19, não puderam viajar com antecedência para realizar um mural de grandes dimensões no edifício. Em seu lugar, temporariamente, contávamos com um grupo de desenhos sobre papel produzidos especialmente para a exposição.
Eis que uma jornalista alemã faz uma série de perguntas sobre a exposição e, ao final de nossa conversa, resolve enfocar na presença de artistas indígenas na mostra.[i] Referindo-se aos desenhos feitos pelo MAHKU, ela questiona: “Você não acha que a presença de artistas como esses endossa o caráter exótico da arte brasileira?”. Surpreso com a frase, perguntei de volta: “Exótico para quem?”. A jornalista permaneceu em silêncio. Aproveitando a deixa, refleti: “Por que naturalizar a presença do MAHKU nesta instituição como algo exótico? Qual artista brasileiro poderia ser lido como não exótico aqui? Por que, no Brasil, não estranhamos a presença de artistas como Anselm Kiefer e Sigmar Polke (1941-2010) em exposições? Eles não seriam também exóticos para a ‘cultura brasileira’? O que não seria exótico? Mostrarmos trabalhos do Gerhard Richter?”. Constrangida, a jornalista disse que “era só uma pergunta”, ao que respondi que meu comentário era “só uma resposta”.
No final das contas, essa troca de provocações não foi incluída em sua matéria final sobre a exposição.
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Quatro meses após a abertura de Sweat, Ibã Huni Kuin e Kássia Borges puderam viajar a Munique e, durante uma semana, fizeram um mural intitulado Rashuaka no espaço de acesso para a Galeria Norte da instituição, onde estava concentrada a maior parte da exposição. A pintura está situada abaixo de uma escada – elemento arquitetônico que, assim como todo o edifício, está diretamente vinculado à história do nazismo. Não esqueçamos que a Haus der Kunst é um prédio proposto por Adolf Hitler (1889-1945) para ser, como dizia seu nome original, a “casa da arte alemã” em oposição à noção de “arte degenerada” e, nas entrelinhas, indo contra a experimentação do modernismo.[ii] Era do desejo do ditador que sob esse espaço fosse resguardada a “real arte” herdeira de ideais clássicos e neoclássicos. A pintura feita pelo MAHKU tinha uma relação com a noção de cura – algo importante em um prédio com tamanho peso traumático.
Ao observarmos o processo de realização de Rashuaka, notamos alguns elementos constantes na produção do MAHKU. Em primeiro lugar, não se trata de um trabalho produzido exclusivamente pelas mãos de seus integrantes; como Ibã Huni Kuin, o criador do MAHKU, costuma afirmar, o princípio do coletivo é gerar a oportunidade para se pintar a muitas mãos, conversar e aprender. Nesse caso, devido à sua escala monumental – com cerca de 25 metros quadrados –, foram convidados alunos da Academia de Belas-Artes de Munique.
Não existe um desenho prévio à realização da pintura mural; para o coletivo é essencial estar dentro do espaço arquitetônico (ou no espaço público) e criar uma relação com as paredes que serão ocupadas. A maneira como o MAHKU produz se dá de forma pendular; no vaivém criativo proposto pelo coletivo, o vazio das paredes é observado, algumas linhas iniciais são traçadas, pausas são feitas, conversa é jogada no ar, se toma um café e logo se volta ao trabalho. De maneira sutil, o coletivo joga com o ritmo ditado pelas escalas e normas de trabalho de diferentes instituições de arte pelo mundo. A cada convite feito, as instituições desejosas por terem seus trabalhos também precisam se adaptar ao seu modus operandi, às mudanças e às incertezas. Trata-se de entender que aquele encontro é um momento de criação onde qualquer conversa, apontamento ou discordância construtiva pode levar a imagem final a outra direção.
Aliás, faz sentido falar em “imagem final” para o que o MAHKU propõe? Tenho a impressão de que estas pinturas são mais a consequência da definição de dias e horas colocadas pelas instituições (e pela indústria cultural) do que algo buscado de maneira objetiva pelo coletivo. Em outras palavras, se mais dias e horas fossem sugeridos para a sua realização – ou se, por exemplo, eles fossem convidados para ocupar um espaço por um tempo contínuo e longo –, essas imagens estariam em constante transformação, assim como há algo de movimento sugerido pelas suas próprias formas, cores e iconografias.
Conversando com Ibã Huni Kuin sobre o título deste trabalho, ele me disse: “É um sopro que tira a doença; soprar do corpo da gente. Tirando o mau-olhado, tirando o mau espírito, tirando a inveja, tirando a moleza, tirando a dor. Cura”.[iii] Gosto de pensar sobre o trabalho do MAHKU de maneira semelhante ao próprio ato de assoprar; essa movimentação dos lábios depende de uma série de fatores que envolvem não apenas o corpo da pessoa que o faz, mas também de condições físicas e químicas presentes no lugar de onde o sopro é feito. Um sopro nunca será exatamente igual ao outro e, portanto, afetará o seu entorno – e a pessoa que o realiza – de diferentes formas. Assim flutuam as imagens e a pesquisa do MAHKU – de sopro em sopro, de parede a parede, encontro após encontro.
Rashuaka traz algo da brevidade dos sopros. Assim como em outras pinturas de grande escala feitas pelo MAHKU, o mural nos convida a desistir pela busca por um ponto central ou elemento narrativo que se protagonize em relação à sua composição. Uma grande jiboia se espalha por todos os lados que delimitam as paredes ocupadas pelo coletivo; um olhar mais atento perceberá que, na verdade, vemos três diferentes cabeças de cobras. Se uma delas traz um padrão geométrico que joga com as cores preta, amarela e vermelha, uma segunda jiboia joga com as mesmas cores e com outro padrão, ao passo que a terceira delas se relaciona com a própria cor branca que uma vez foi o fundo da parede. Nas pinturas feitas pelo MAHKU, há um interesse por aquilo que na produção de arte no ocidente se convencionou chamar de excesso.
Continuando a percorrer a superfície da pintura, notamos que parte do corpo de uma dessas cobras sugere os contornos dos arbustos de uma árvore. Em seu topo, pintados sobre um fundo azul, quatro peixes parecem estar associados a ninhos. Abaixo desse tronco, onde poderíamos imaginar ver as raízes desta plantação, em uma área pintada de azul vemos alguns peixes repousando. No canto superior esquerdo da pintura, com asas extremamente abertas, aquilo que parece ser um beija-flor.
O MAHKU não sugere hierarquias entre diferentes esferas da experiência vital; segundo suas pinturas, existimos de forma indicial em um espaço pictórico onde vida e morte, passado e presente, vegetal, mineral e animal estão intrinsecamente amalgamados. Não esqueçamos da origem da pesquisa do coletivo – a relação de Ibã Huni Kuin com os cantos proferidos por seu pai e reunidos em um livro publicado em 2006.[iv] As figuras que aparecem nas pinturas parecem sempre fragmentadas, como se tivessem origem em diferentes paisagens que são orquestradas em uma mesma imagem. Algo semelhante se dá quando escutamos os cantos Huni Kuin – cada verso traz um elemento que, quando recodificado em português por Ibã, traz a sensação de narrativas e espaços paralelos que se avizinham.[v]
Em todas as suas pinturas, chama a atenção a vivacidade das composições e a vibração que essas imagens emanam sobre o corpo do espectador. No caso específico de Rashuaka, a opção por pintar parte dos padrões geométricos que compõem as jiboias sobre uma porta contribui com a impressão de que essas cobras envolveram a solidez modernista da Haus der Kunst. Opções semelhantes foram feitas em ocupações prévias do MAHKU em edifícios com histórias e proposições muito diferentes.
Em 2014, quando foram convidados a participar da ocupação Made by... feito por brasileiros no antigo Hospital Matarazzo , em São Paulo, as pinturas murais giravam em torno de uma jiboia e de um grande jacaré. Aqui, o coletivo optou por incluir figuras humanas que se espalhavam pelo espaço fitando o espectador. Em uma pequena sala emoldurada por um arco, o MAHKU fez a imagem de uma cobra que circundava o corpo de uma mulher. Um ano depois, para a Universidade Federal do Acre, em Rio Branco, o coletivo ocupou um auditório com imagens de animais e pessoas indígenas representadas em ações cotidianas observadas pelo grupo na Aldeia Chico Curumim, no Alto do Rio Jordão, no Acre. Em 2017, no Sesc Palladium, em Belo Horizonte, ao desafio de lidar com uma superfície composta por diversos lados dobrados, uma enorme jiboia é pintada, ladeada por figuras humanas, reafirmando a superfície fragmentada da pintura. Por fim, em 2021, novamente em Belo Horizonte, mas a convite do evento CURA – Circuito Urbano de Arte –, a empena de um prédio é ocupada. Aqui, se aproveitando da verticalidade monumental do edifício, cinco animais são representados de forma mais realista – um tatu, uma capivara, um javali, uma anta e um veado. No que poderia ser chamado de fundo da composição, diversos padrões geométricos extremamente coloridos e, como de costume a quase todos os seus projetos, a jiboia que indica movimento e, em certa medida, emoldura a composição.
Cada um destes exemplos foi executado por diferentes integrantes do MAHKU e, portanto, possuem suas peculiaridades formais. Constante a eles – além do protagonismo da jiboia, animal e entidade que possui papel central na cosmovisão Huni Kuin – está a importância da cor e das noções de geometria, repetição e padronagem. Podemos relacionar essa cultura visual com a cultura ancestral dos kene, tradição essencial para os Huni Kuin e que informa a produção de imagens do coletivo. Esses são grafismos utilizados em pinturas corporais, cestaria, cerâmica, tapeçaria e diversos outros fins. Com múltiplos nomes e interpretações, podem ser enxergados como uma maneira de se relacionar com o mundo a partir de formas que, para uma pessoa não iniciada nas culturas Huni Kuin, rapidamente poderiam ser aproximados da ideia de abstração.
Esta análise das obras do MAHKU nos leva a outros dois pontos essenciais para se discutir sua pesquisa: a escala e a efemeridade. Quando comparamos esses trabalhos com aqueles realizados em papel ou em tela, suas peculiaridades aos poucos se fazem perceptíveis. No que diz respeito aos trabalhos em papel – como aqueles que fazem parte do acervo do Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand (MASP) –, as narrativas sugeridas pelo MAHKU se dão de forma concentrada e ditada pelo uso dos lápis de cor e das canetas hidrográficas. As muitas mãos que compuseram esses desenhos e telas estão constantemente interessadas pela simultaneidade narrativa – tal qual uma história em quadrinhos – e pela transformação. Assim como nos trabalhos de larga escala, algumas das visões transpostas para o papel carregam a centralidade da metamorfose. Condicionadas, porém, pelos quatro cantos das folhas de papel ou pelas margens das telas de algodão, há algo das pinturas murais que se perde neste outro formato.
Voltando à fala de Ibã Huni Kuin sobre o “sopro” – e, consequentemente, sobre a efemeridade de seu ato –, quando essas imagens são supostamente eternizadas sobre superfícies tão devedoras de diferentes tradições ocidentais das belas-artes, há uma camada de vitalidade e corporeidade que se esvai. Os gestos vistos nas pinceladas não estão aqui, assim como o apelo que as narrativas têm para o corpo humano devido à sua escala. Mais do que isso, quando o MAHKU se propõe a pintar sobre a superfície de prédios com usos tão diversos – e em sua enorme maioria, até agora, prédios coordenados pelo capitalismo ocidental branco –, há uma poética da ocupação espacial no melhor sentido do “tomar para si” que os trabalhos em escala menor – feitos, muitas vezes, para a comercialização e participação em exposições rotativas – não carregam.[vi]
Por fim, devido às agendas impostas pela indústria cultural, infelizmente esses trabalhos são destruídos ou, como diria Marisa Monte em célebre música sobre os murais do Profeta Gentileza, “apagaram tudo/ pintaram tudo de cinza/ só ficou no muro tristeza e tinta fresca”.[vii] Mas essa efemeridade nos murais não nos remeteria à fugacidade do sopro que, metaforicamente, podemos relacionar com a própria efemeridade da vida? Ou, redirecionando as comparações, com o caráter temporário dos kenepintados sobre diferentes corpos Huni Kuin devido a ritos e rituais específicos?
As pinturas do MAHKU – assim como qualquer imagem produzida por um ser humano – vêm de um contexto cultural específico que, devido ao seu caráter polissêmico, possibilita infindas relações com outras culturas visuais e temporalidades diversas. Sabendo que parte considerável da produção de arte do MAHKU foi realizada em espaços historicamente dedicados à arte ocidental, por que também não relacionar alguns de seus murais às largas discussões em torno das ideias de abstração, decoração e suas relações com arquitetura moderna e contemporânea? Como não aproximar suas pinturas murais no espaço público de muitos artistas do graffiti? O quão interessante não poderia criar diálogos extremamente discrepantes entre as suas imagens com um contexto como o austríaco onde, durante a passagem do século 19 para o século 20, tantos artistas como Gustav Klimt (1862-1918) questionaram a noção de arte total e suas relações com a música, a arquitetura, a natureza e a sociedade? E o diálogo entre o coletivo e a produção de artistas modernistas como Chico da Silva (1910-1985) ou contemporâneos como Abel Rodríguez? O fato destes nomes serem indígenas (ou de ascendência indígena) permite que a sua comparação com a produção de imagens do MAHKU seja vista de maneira mais orgânica? Ou ainda há muitos abismos entre suas imagens, interesses e diferentes histórias de institucionalização na história da arte ocidental?
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Mais de um ano depois de seu acontecimento, a pergunta feita por aquela jornalista alemã ainda me deixa intrigado. Posso imaginar absolutamente que o público alemão não esteja acostumado com a cultura visual e as questões trazidas pela produção de arte nem do MAHKU, nem de outros artistas e coletivos indígenas, mas será que a pergunta proferida por ela foi construída de forma generosa? Haveria abertura na sua expectativa de resposta ou se tratava de uma oratória preparada para se transformar em uma armadilha discursiva?
Na certeza de que essa resposta objetiva e certeira nunca chegará até mim, prefiro seguir com o movimento sinuoso dos sopros que o MAHKU tem proferido. Se, para eles, pintar é soprar, isso também denota que nem todos os corpos e existências serão movimentados pelo vento produzido por seus corpos e suas imagens – sejam elas monumentais e arquitetônicas, sejam elas portáteis e feitas na escala de suas mãos.
Se as imagens do MAHKU não produziram nenhum vento sobre o corpo daquela jornalista – ou se o ar movimentado a levou apenas a ler suas imagens por uma chave geográfica que endossa o seu eurocentrismo –, tudo bem; enquanto isso, ao passo que escrevo este texto, o sopro proporcionado por suas imagens possibilitou não apenas que minhas mãos se movimentassem rapidamente sobre as teclas do meu computador, mas também que minha memória tentasse estabelecer conexões entre diferentes obras do coletivo, outras autorias e temporalidades.
De sopro em sopro, de vento em vento, de ventania em ventania se cria uma tempestade – e o MAHKU está apenas começando a cantar e a pintar.
[i] Além do MAHKU, a exposição também contava com obras de Kaylene Whiskey, artista Pitjantjatjara, do território atualmente conhecido como Austrália.
[ii] A Haus der Deutschen Kunst foi construída entre 1933 e 1937, tendo como arquiteto Paul Ludwig Troost (1878-1934). Sua inauguração foi em 18 de julho de 1937 com uma grande exposição intitulada Große Deutsche Kunstausstellung[Grande exposição de arte alemã] e, a alguns passos dela, foi aberta no dia seguinte a exposição Entartete Kunst (Arte Degenerada), no Hofgarten.
[iii] Conversa telefônica realizada com Ibã Huni Kuin em 19 de setembro de 2022.
[iv] Isaías Sales Ibã Kaxinawá, Nixi pae: o espírito da floresta. Rio Branco: CPI-AC, 2006.
[v] Em um dos vários cantos reunidos por Ibã Huni Kuin, gostaria de trazer como exemplo um intitulado “Hawẽrautibuya”. Cito aqui os seus primeiros quatro versos: “Hawẽ rautibuya haya ee haya ee haya ee/ Yube baũrauti haya ee haya ee haya ee/ Yube iskuhinari haya ee haya ee haya ee/ Naitxã txãbururi haya ee haya ee haya ee”. Como se pode perceber, na segunda parte de cada um dos versos há a repetição de uma série de sons e palavras. Ao conversar com Ibã a respeito do canto, ele o recodificou em português como: “Esse é um canto sobre as visões que se tem durante o uso da ayahuasca. As palavras descrevem as muitas cores e uma jiboia – você vê a jiboia de dentro e ela tem muitas, muitas curvas. Há o céu e muitas diferentes tipos de tronco que se transformam em uma jiboia”. Como se pode perceber não apenas pelas repetições no canto, mas também pela explicação de Ibã, estamos diante de cantos que, a partir da repetição de seus fragmentos sugerem sensações, sentidos e imagens para aqueles que os escutam – assim como em suas pinturas.
[vi] Essas comparações de nenhuma forma diminuem a pesquisa que também se dá nesses desenhos e pinturas sobre tela, nem desconsidera as frases ditas por Ibã Huni Kuin em uma de suas entrevistas mais conhecidas. Nela, ele disse a frase: “Vendo tela e compro terra”. Entendidos os lugares artístico, econômico e mesmo político desta circulação de imagens, eu particularmente ainda considero as pinturas murais mais ricas em questões, leituras, experiências e interpretações.
[vii] Douglas Vieira, “O jeito é comprar”. In: Revista Trip, edição 271. São Paulo, 2018. Disponível em https://revistatrip.uol.com.br/trip/coletivo-de-artistas-indigenas-mahku-da-etnia-huni-kuin-vende-telas-para-poder-comprar-mata-virgem. Acesso em 19.09.2022.
(texto feito para o catálogo relativo à exposição “MAHKU: Mirações”, com curadoria de Guilherme Giufriada, no Museu de Arte de São Paulo, em 2022)