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Rachaduras


Rodrigo Cunha
[22 de março de 2015]



Os pintores devem saber que com suas linhas circunscrevem as superfícies. Quando enchem de cores os lugares circunscritos, nada mais procuram que representar nessa superfície as formas das coisas vistas, como se essa superfície fosse de vidro translúcido e atravessasse a pirâmide visual a uma certa distância, com determinadas luzes e determinada posição de centro no espaço e nos seus lugares. (Leon Battista Alberti, “Da pintura”, 1435)

A partir desse trecho de Alberti, diversos teóricos, historiadores e críticos de arte pensaram a metáfora da pintura como janela para o mundo. Ao observar com calma as pinturas reunidas para a exposição “Jardim Cético”, de Rodrigo Cunha, as teorias de Alberti vieram à lembrança. Quinhentos anos separam os dois, sem falar na distância geográfica entre Florença e Florianópolis, mas enxergo esse diálogo através da indicação do autor a respeito do “vidro translúcido” que as boas pinturas deveriam emular. Seria possível enxergar essa construção cênica, tal qual um teatro de palco italiano, nas imagens de Rodrigo Cunha?

Em primeiro lugar, chama a atenção nesse ciclo pictórico do artista a presença do corpo humano. Estes anônimos se encontram, quase sempre, solitários dentro de espaços fechados que parecem ser seus recantos de privacidade – sejam eles feitos para o trabalho, sejam para serem chamados de lar. Suas anatomias, mesmo que rapidamente reconhecidas como cabeças, troncos e membros, possuem alguma rachadura no seu espelho do real; deveríamos naturalizar essa sequência de bochechas rosadas e olhares lacônicos? Tratar-se-ia de uma família que habita a mesma residência? Nesse sentido, aliás, vale a pena estranhar também a semelhança entre as texturas das paredes, os tacos de madeira no chão e os contornos dos rodapés.



Um pequeno cão se faz presente em duas dessas composições com a mesma postura física e nos mostra sua língua. Certamente que ela não estará cheia de saliva; as figuras de Rodrigo Cunha se assemelham mais à minuciosidade necessária de um escultor em cera. No lugar das pinceladas expressivas, coloristas e que por muitas vezes habitam um senso comum do que seria a “pintura brasileira contemporânea” (em especial no que diz respeito à presentificação do corpo humano), este pintor trava uma batalha igualmente complexa, mas dentro dos detalhes. Ao optar por não se utilizar de desenhos prévios, recorrendo a um banco de imagens que organiza mentalmente como um caderno de esboços, o artista afia seus pincéis de pouco a pouco no campo do milimétrico.

Através do ceticismo que dá o tom às cenas compostas por Rodrigo, vemos essas imagens com menor ou nenhuma transcendência. Uma xícara de café, um fruto fatiado e um monociclo, dentre outros objetos, me parecem mais próximos de instrumentos de composição cênica de uma peculiar domesticidade do que de pretensões imediatas à alegoria. A janela de Alberti, pouco a pouco, começa a embaçar e a movimentação dos personagens pintados nesses palcos sobre tela é nula.



Essa possibilidade de interpretação não impede, mesmo assim, que nosso olhar bata e volte em alguns desses apetrechos. O que um cajado e um ancinho fazem nesse repertório visual? Eles parecem mais apropriados para os espaços representados dentro dos cômodos desses personagens; aliás, esses polígonos de paisagem são representações de pinturas dentro da pintura ou podem ser vistos como janelas dentro dos quatro cantos das janelas, segundo Alberti, pintadas pelo artista?

Parece-me claro, enquanto isso, que estas composições advêm de uma aproximação com a tradição clássica das imagens arcádicas. Pessoas nuas vagueiam pelo verde das folhas e parecem mostrar ao espectador que, sim, diferente destes homens enclausurados à sua frente, é possível viver em contato direto e supostamente harmônico com a natureza, a colher frutas dos pés, banhar-se em rios cristalinos e cuidar de animais sem a utilização de hormônios. Porém, na única imagem onde a paisagem não é pano de fundo, mas domínio da extensão da pintura, a figura humana que se faz presente destoa de seus companheiros de Arcádia. Vestida, censurando sua nudez, também oferece seu olhar lânguido ao púbico e é acompanhada por fragmentos de uma construção. As ruínas dessa última imagem parecem anunciar o mesmo que a célebre pintura de Nicolas Poussin onde há um túmulo que apresenta a frase “Et in Arcadia ego”, ou seja, “Na Arcádia, eu também existo”. Eu quem? A morte. Morte de que?



Pode-se responder que estamos diante de mais uma constatação do fim de certa ideia hedonista da experiência da paisagem. Morre a imensidão da Arcádia de Virgílio, mas ainda nos restam os jardins. A partir daí, é possível afirmar também que as pinturas criadas por Rodrigo Cunha, mais do que embaçar as janelas de Alberti, deixam rachaduras em seus vidros. Na ausência do ponto de fuga único desejado por Alberti, o espectador é presenteado com a necessidade de exercitar o seu olhar e os limites de seu próprio ceticismo perante as imagens.


(texto relativo à exposição "Jardim cético", de Rodrigo Cunha, na Zipper Galeria, em São Paulo, entre 24 de março e 18 de abril)
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