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Randolpho Lamonier


[02 de dezembro de 2017]

Esta exposição é a primeira vez em que o artista Randolpho Lamonier reúne uma grande quantidade de trabalhos em um único espaço. Em seu percurso institucionalizado por meio de - em sua maioria - exposições coletivas nos últimos cinco anos, chama a atenção a sua constante prática da fotografia; por vezes vemos o registro de diferentes aspectos da metrópole e, em outros momentos, seu olhar se esbarra com outros corpos capturados em aparentes momentos de intimidade.

Esses elementos também se fazem presentes em “Vigília”, porém, uma vez colocados lado a lado com alguns trabalhos recentes e outros inéditos, ganham outro fôlego e espaço na sua pesquisa.Sua relação afetiva, existencial e visual com isso que poderíamos chamar de “cidade” é aqui potencializada; seja em sua Contagem natal, seja na Belo Horizonte com a qual se acostuma e estranha diariamente nos últimos anos, parece inegável que Lamonier tem explorado as maneiras de fundir a metrópole em imagens de diferentes formas. Interessa especialmente a ele o subúrbio e suas narrativas industriais geralmente esquecidas ou borradas – distante do turismo, seu olhar entranha ruínas enferrujadas buscando rostos que tendem a fugir de uma visualidade hegemônica e que, salvo seu interesse, possivelmente não se transformariam em imagem.



A diversidade de materiais e técnicas com as quais Lamonier desenvolveu estes trabalhos é um aspecto que merece destaque. O público tem à sua frente não apenas trabalhos fotográficos, mas em mídias tão diferentes como a pintura, a monotipia, o vídeo e a tecelagem. Para dialogar com a precariedade da vivência cotidiana na sub-urbe – seja ela institucional, ecológica ou vital –, parece fazer sentido poético a economia de formas plásticas de sua parte. Em especial quando ele parte de técnicas mais tradicionais das artes visuais, suas formas são mais esquemáticas e rápidas, onde as linhas abrem espaço para pequenas áreas de cor e algumas manchas dão a tonalidade das imagens.

Haveria espaço para uma excessiva racionalização da forma a partir da experiência vital suburbana? Há escopo para planejar em áreas em que as palavras dos jornais estão sempre criando associações com a violência, com a interrupção e com um fracasso social comparativo com áreas socioeconomicamente privilegiadas? Quais as expectativas e memórias afetivas de um (ainda) jovem artista que migra para Belo Horizonte e que percebe as continuidades e interrupções de suas vivências no antigo quintal de casa? O que é a “nossa casa” e no que ela se transforma quando a deixamos e esta se torna um possível objeto de estudo e estranhamento?



Essas parecem ser algumas das perguntas centrais dessa vigília sugerida pelo artista nesta exposição. Observamos de modo concentrado uma série de lugares e um grupo de pessoas para, na virada da noite, concluirmos que os objetos de vigilância serão sempre nós mesmos e essa insistente solidão que move o nosso estar no mundo.

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Podemos observar esta exposição por meio de dois elementos que constituem a experiência urbana: a percepção do espaço e da paisagem, de um lado; do outro, a presença vital do corpo humano, seus nomes próprios e pulsões.

O modo como o artista representa a cidade no campo da pintura se faz por meio de um ponto de vista elevado, como a vista aérea de espaços onde a fumaça prevalece. A relação entre residências, indústria e estradas é orgânica – poderíamos sair caminhando da siderúrgica para uma dessas casas frágeis, definidas pelo seu contorno de uma linha só. A palavra se faz importante como nomeadora de ruas que frisam a entropia desses lugares ou apontam para o impossível – tropical e industrial se encontram, assim como Amazonas e Eldorado. A escrita também manifesta situações que parecem advindas de noticiários: “Ocupação William Rosa resiste a um violento ataque”, diz uma das telas.

O aspecto narrativo que essa e outras frases propiciam ao espectador leva também ao modo como o artista escreve em suas peças têxteis. Com um contraste de cores mais forte, esses pequenos tapetes (ou trapos bordados?) trazem diferentes episódios de vidas não muito radiantes – Gabriel foi assassinado, assim como as ratazanas do esgoto da Vila Cristina. E o sonho da casa própria? Cada vez mais um jargão proferido por Silvio Santos em seus diversos programas dos domingos. São nessas imagens que aparecem alguns indícios daquilo que parece ser algo essencial para a pesquisa de Lamonier: o destaque ao corpo e, mais do que isso, ao rosto.

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“Randolpho trocador” e “Desali pixador” são as frases ao redor dos retratos bordados do próprio artista e de seu amigo Desali (que também participa dessa temporada de exposições do Palácio das Artes). Ambos também aparecem na série de polaroids “B. O.”, em que outras pessoas de seu círculo de artistas e amigos foi fotografada. Mesmo que separados em imagens individuais, esses retratos sugerem a união necessária para se sobreviver aos tempos tão vigilantes e cerceadores que vivemos. São retratos feitos com “baixo orçamento” ou imagens para algum “boletim de ocorrência”? Ou ambos?

A repetição de diferentes tons de pele não-caucasianos e a maneira não-normativa como muitas dessas pessoas se apresentam para a câmera confirmam o interesse do artista em uma cultura visual que poderíamos chamar de underground, mas que também nas últimas décadas foi massificada e transformada em produto. “Vigília”, a instalação que dá nome à exposição, parece exemplar desse tipo de exploração da fotografia entre o documento e a ficção: Nan Goldin, “24 hour party people” ou “Skins”? Nada disso: um pé em Beagá, outro em Contagem e um olhar que certamente tomou um pouco de cada um desses drinks.



Já em “Vila Itaú”, série de monotipias feitas sobre papéis encontrados em suas expedições em ruínas industriais, a aparente confiança dos corpos jovens fotografados cede lugar para rostos desenhados de maneira mais crua. Alguns nomes próprios são espalhados pelas superfícies dos papéis e as vidas aqui sugeridas estão mais próximas de suas pinturas de paisagem que rascunham cidades industriais – do mesmo modo que esses rostos também são esboços.

O carpe diem da maior parte de suas fotografias é tomado por uma neblina de poluição – porém, como a videoinstalação “Assembléia” nos ensina, nem só de momentos festivos a juventude é composta. Pelo contrário, festejar é só um modo de esquecer por algumas horas dos fardos que carregamos e tentar dar algum sentido para o labirinto em que nos encontramos. Talvez só assim – junto aos nossos amigos, criando imagens em momentos efusivos – sejamos capazes de escapar do cruzamento da Avenida Amazonas com a Avenida Eldorado.

Quando isso não é possível, estamos entregues à nossa solidão – e talvez seja exatamente sobre ela que o trabalho de Randolpho Lamonier verse.


(texto curatorial da exposição "Vigília", de Randolpho Lamonier , realizada no Palácio das Artes, em Belo Horizonte, entre 31 de agosto e 19 de novembro)
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