Retratistas e retratados
[26 de outubro de 2007]
"Câmara viajante” faz metalinguagem. Partindo do princípio de que este curta é sobre a relação entre fotografia e retrato e que é um documentário, temos um retrato em movimento sobre retratos estáticos. O diretor Joe Pimentel constrói sua obra a partir de um fluxo de belas imagens de seus cinco personagens principais em processo de captura de imagens, mesclando as mesmas com depoimentos dos mais interessantes sobre o melancólico ato de se eternizar a imagem do outro.
Este curta parece ter tanta potência devido, justamente, à importância das palavras proferidas por esses homens que, até há pouco tempo atrás, me eram anônimos. Suas frases giram em torno de questões muito caras à teoria do retrato, remetendo a questões lá dos grandes retratistas da história da arte, como Ticiano, Velásquez e Goya. Idealizar ou criar uma imagem fiel do outro? Como enquadrá-lo visualmente no espaço da tela ou, como neste caso, no pequeno pedaço de papel?
Somando a isso, é bonito perceber o esmero com que o diretor pinça imagens desses fotógrafos em processo, em embate com seus futuros retratados, seja convencendo-os a serem retratados, seja dando orientações aos mesmos sobre como devem se portar diante da câmera. Melhor que isso, só mesmo suas expressões ao verem sua imagem e semelhança no pedaço de papel. Quem de nós nunca teve esse mesmo frio na barriga ao voltarmos os olhos a uma fotografia que remete a um espaço-tempo impossível de ser retomado?
Outro filme presente no festival desse ano, que dialoga diretamente com esse documentário, é “A curva”, de Salomão Santana. Este pesquisou em um arquivo pessoal, também no interior do nordeste, aquelas fatídicas fitas VHS de festas de aniversário. Após uma apreciação desse material, ele fez uma curadoria de pessoas dos mais diversos tipos, criando uma nova obra como que de colagem daqueles pequenos momentos em que estamos sendo filmados (contra vontade ou não).
O que faz “A curva” tão bom é o fato dele não dar muitas explicações ao espectador. Você senta na sala de cinema, olha pra tela grande, vê uma seqüência de anônimos, faz as mais diversas leituras de quem sejam eles e do que estão pensando e o curta termina. Essas imagens têm um quê de tristeza, que é realçada por uma insistente música que é reproduzida bem ao fundo, criando um elo entre as imagens escolhidas pelo diretor. Salomão faz um ensaio sobre os pequenos lapsos de tempo, aqueles curtíssimos momentos em nossas vidas que às vezes duram até mesmo frames de segundo, em que estamos a nos dedicar ao nada, ao silêncio, à introspecção, a aquele vulgo "olhar vazio".
Parece que, mesmo indo em direções opostas, estes dois curtas se relacionam no que diz respeito a uma reflexão sobre a relação entre imagem e memória. O primeiro focando nos produtores de memória, suas relações com os objetos das fotografias e suas tensões em um momento em que a fotografia digital parece imperar. O segundo toma outro caminho, indo atrás justamente do que, no fim das contas, parece ser o destino de qualquer fotografia: o anonimato. Quem garante que sempre saberemos as identidades desses objetos permeados por memória?
(texto originalmente publicado no blog de críticas da Mostra Curta Cinema em outubro de 2007)