Riposatevi
Lucio Costa
[15 de dezembro de 2018]
O ano era 1964. A Trienal de Milão, evento dedicado ao design e à arquitetura, chegava à sua décima terceira edição. Organizada com o tema geral do “tempo livre”, essa edição foi organizada por Umberto Eco e Vittorio Gregotti. Com constantes discussões sobre as legislações do trabalho pelo mundo, como uma exposição poderia pensar o tempo ocioso? O que as pessoas faziam para aproveitar as supostas oito horas diárias em que nem trabalhavam, nem dormiam? Treze países foram convidados para contribuir com proposições e, pela primeira vez, o Brasil estava entre eles. Com um contato estabelecido a partir do Ministério das Relações Exteriores, o arquiteto e urbanista carioca Lucio Costa (1902-1998) foi convidado para pensar em um projeto e o crítico de arte Jayme Maurício foi chamado para escrever sobre a seção. O espaço reservado ao Brasil era entre as seções da Iugoslávia e Finlândia, em uma sala pequena de formato semelhante a um “L”.
Como se observa pelos esboços do projeto, diversas adaptações foram necessárias. Inicialmente o projeto estava baseado em uma estrutura circular feita de madeira, mas devido ao espaço apertado, ao tempo curto e ao orçamento restrito – elementos apontados por diversas fontes da época – Lucio Costa se deteve aos elementos primordiais de sua proposta: as redes de dormir, plantas, violões, fotografias e a frase italiana central “Riposatevi” – “Repousai-vos” ou, em um português mais informal, “Relaxem”. Eis o seu monumento ao tempo livre e ao Brasil.
Como ele disse em texto da época, “O tempo livre em termos brasileiros pode ter como símbolo a rede e o violão”. Havia apenas quatro anos de que Brasília, a cidade desenhada por Costa, havia sido inaugurada e atraído a atenção de arquitetos e intelectuais de todo o mundo. Em “Riposatevi”, portanto, ele pretendia lançar luz tanto para o seu feito recente, quanto responder à proposição curatorial. O espaço era tomado por registros fotográficos feitos por Marcel Gautherot - o fotógrafo oficial do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – de vistas da praia de Aquiraz, no Ceará e também de vistas tomadas durante a construção de Brasília. Nas imagens litorâneas, o olhar do fotógrafo se voltava para as jangadas e os jangadeiros, enquanto que na visão de Brasília, os edifícios de concreto armado chamavam a atenção em contraponto com uma cidade ainda vazia.
A associação entre o fazer artesanal e a região Nordeste do país era endossada pelos objetos que dominam o projeto: as redes de dormir. De origem ameríndia e objeto fundador da domesticidade colonial no país, na segunda metade do século XX as redes eram associadas ao Nordeste; a região era famosa tanto por suas praias, quanto pelo sertão e lá se encontrava a indústria da rede. Lucio Costa sugeria, portanto, um discurso claro com a sua seleção de fotografias: o Brasil era um país que se encontrava entre tradições artesanais históricas (jangada e as redes) e a modernização de sua arquitetura (Brasília). Entre o presente e o futuro, se tratava de um estudo de caso em que o projeto moderno estava pautado em um olhar que não poderia meramente substituir o fazer artesanal pelo industrial, mas sim chegar em uma espécie de meio termo. Após exemplificar as fotografias que compunham o projeto, Lucio Costa arremata seu discurso e diz que está a sugerir “que essa mesma gente que passa o tempo livre na rede, quando o tempo aperta constrói, em três anos, no deserto, uma Capital”. “Riposatevi” é, portanto, mais do que um monumento ao descanso, talvez um monumento ao trabalho e, por consequência, aos trabalhadores.
Remontamos esse projeto – que na linguagem da arte contemporânea poderíamos chamar de “instalação” – mais de cinquenta anos após sua montagem em Milão. Com o passar do tempo, esse projeto se transformou em algo icônico tanto para arquitetos, quanto para artistas visuais. Sua possível influência pode ser notada, por exemplo, em uma das “Cosmococas”, de Hélio Oiticica, e nas suas propostas em torno da noção de crelazer[1], assim como nas pesquisas de outros artistas. Uma outra montagem foi realizada durante a Bienal de Veneza de Arquitetura, em 2012.
Inaugurado alguns meses após o golpe militar de 1964 no Brasil, é também pertinente nos perguntarmos se o projeto de Costa era uma resposta à repentina falta de liberdade que acometeu o Brasil durante o novo regime. Poderia o exercício do lazer como liberdade ser entendido em resposta à perda de liberdade sob regimes repressivos? Se a hipótese for verdadeira, a remontagem de “Riposatevi” é bastante pertinente para as discussões que assolam o mundo na contemporaneidade.
Trata-se da primeira vez que “Riposatevi” é remontado no estado do Rio de Janeiro. Mais do que isso, é a primeira vez que sua reinstalação inclui as fotografias feitas por Gautherot, fruto de uma pesquisa acadêmica que discorre há anos. Tentamos ser fiéis aos elementos centrais do pensamento do arquiteto, porém, o salão central do MAC Niterói possui uma planta mais extensa do que aquela usada na Itália. Em diálogo próximo com o escritório gru.a (grupo de arquitetos), embarcamos no desafio da remontagem de qualquer instalação histórica: as adaptações espaciais e temporais. As redes de cores cruas e varandas brancas, os violões, as plantas, as faixas de tecidos coloridos em referência à bandeira do Brasil e a frase “Riposatevi” foram todos mantidos com pequenas adaptações. O número original de redes era catorze – quantidade pequena para a escala monumental desenhada por Oscar Niemeyer para esse museu.
Aumentamos, portanto, o número de redes para trinta, mas mantivemos a trama hexagonal desenhada por Lucio Costa. O posicionamento das fotos teve de ser alterado, mas as escalas e agrupamentos das imagens foram mantidas em proporção às medidas do salão. O diálogo proposto por Costa entre o vaivém das redes e o grande número de imagens dos jangadeiros não é em vão e cremos que nossa nova leitura de sua proposição manteve sua leveza original. Como uma contribuição a essa remontagem, convidamos artistas e intelectuais, assim como o público amplo do museu para trazer livros e lê-los nas redes. Dessa forma, cremos contribuir com uma reflexão sobre o mundo em que vivemos.
Por fim, é preciso também rever as palavras do arquiteto sobre a ideia de trabalho. Não nos esqueçamos que se trata de um discurso proferido há quase cinquenta anos sobre o Nordeste e sobre os nordestinos a partir do Rio de Janeiro, antiga capital do país até a abertura de Brasília. Essa “gente” a qual ele se refere no erguer da nova capital são os imigrantes nordestinos – os chamados candangos – que, por diversas razões, largaram suas cidades e foram concretizar um sonho moderno e carioca. Parte dessa população criou as cidades-satélites de Brasília, outra parte voltou para o Nordeste e outro número de pessoas morreu nos canteiros de obra.
Recodificar os projetos e palavras de Lucio Costa no presente não é diminuir a sua importância dentro da história da arquitetura no Brasil e no mundo, mas sim revê-lo por meio de outros filtros, distanciamentos históricos e posições discursivas. Nesse sentido, até que ponto o convite ao tempo livre ainda se faz possível em um momento histórico em que somos saturados por imagens e bombardeados por informações de telas de celulares que também são espelhos? Quantas pessoas não deitarão nessas redes e trabalharão por umas boas horas? É possível relaxar com tamanha ansiedade quanto ao nosso futuro?
A reinstalação de “Riposatevi” no MAC Niterói é um convite para o público se render ao tempo livre e reimaginar coletivamente novas realidades pertinentes ao Brasil do presente.
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[1] A proposição de Oiticica de 1969 de Crelazer - palavra formada da união de criar, crer e lazer - significa tanto a criação no lazer assim como a crença nele, e está ligada à percepção criativa do lazer não repressivo e à valorização do ócio.
(texto curatorial escrito com Pablo León de La Barra sobre a exposição "Riposatevi", de Lucio Costa, no MAC Niterói, aberta entre os dias 15 de dezembro de 2018 e 17 de março de 2019)