Separar a cabeça do corpo
OPAVIVARÁ!
[30 de abril de 2013]
Habitante de Minas Gerais, importante estado brasileiro devido ao seu passado relativo à exploração do ouro, ele trabalhou inicialmente como técnico de mineração, responsável por escavações e, num segundo momento, militar, vigia dos rotas que levavam a essas expedições. Observando o processo de desigualdade desse ambiente, ou seja, muito se trabalhava e pouco se ganhava para enriquecer o império português, ele pede afastamento de sua função. A partir de 1787, se reúne junto a um grupo de outros homens que visavam realizar a independência do estado de Minas Gerais, lutando contra estas irregularidades do círculo de extração mineral.
Descobertos em 1789, o grupo de revolucionários foi preso, julgado, torturado e, em alguns casos como no do próprio Tiradentes, exterminado. Já no Rio de Janeiro, então capital do Império, foi enforcado e esquartejado, em 1792, em uma esquina próxima à praça que leva o seu nome. Seus membros foram espalhados por pontos diversos de cidades situadas no circuito de exploração do ouro em Minas Gerais, assim como sua sentença ordenava:
... que seja levado pelas ruas públicas desta cidade ao lugar da forca, e nela morra morte natural para sempre e que separada a cabeça do corpo seja levado a Vila Rica, donde será conservada em poste alto junto ao lugar da sua habitação, até que o tempo a consuma; que seu corpo seja dividido em quartos, e pregados em iguais postes pela Estrada de Minas nos lugares mais públicos, principalmente no da Varginha, e Sebolas; que a casa da sua habitação seja arrasada, e salgada...
No centro da praça, sobre um monumental cavalo e a levantar a mão para o céu, está a imagem de D. Pedro I, responsável pelo decreto da independência da nação em 1822. O primeiro imperador do Brasil é filho de D. João VI, rei que se translada de Portugal para o Brasil em 1808, em rápida fuga do exército de Napoleão. Ler a palavra “Tiradentes” ao lado da imagem daquele que, de modo contraditório, era descendente dos responsáveis pela sua própria execução é algo, no mínimo, irônico e demonstrativo de como a História dessa instituição chamada por “nação” é cheia de camadas. Independente de seu nome, esse espaço público se configurou como de importância peculiar na constituição de uma identidade urbana do Rio de Janeiro. Teatros e museus o rodeiam, e sua ocupação espacial já foi dada por feiras, apresentações de bandas e, claro, falas de nosso segundo imperador, D. Pedro II.
Esta praça, assim como outras encontradas no Rio de Janeiro, receberam, no decorrer do século XX, a colocação de grades. Em um esforço contra uma eminente desigualdade sócio-econômica que elevou o número de moradores de rua, esta foi uma solução de cunho prático que funcionava como a arquitetura de um presídio. Ao centro, portanto, figurava um espaço público, acessível em horário determinado através de um portão; no seu entorno, os passantes da cidade que se viam presos pelo lado de fora. Invertendo a dinâmica de uma cela, o que está ao centro se sacraliza e os que observam são enxergados como criminosos em potencial.
Mais do que isso, ao se relacionar o objeto com o ambiente em que se encontrava inserido, a lembrança da própria biografia de Tiradentes vinha à tona. Se ele subiu em uma escada para ser enforcado, assim como o corpo de Jesus é descido da cruz através de uma, o corpo do espectador era convidado a, como diz o título da proposição, “pular a cerca”. Para além de se realizar uma atividade tida normalmente como ilegal, este simples subir e descer é uma visada ácida sobre a sociedade brasileira contemporânea e, por consequência, sobre a História do Brasil e as marcas de distinções sociais deixadas ao largo dos séculos.
Devido ao término de uma reforma que restaurou as esculturas e o pavimento da praça, inserida em um projeto de “revitalização do Centro do Rio de Janeiro”, as grades de algumas praças da cidade foram retiradas em agosto de 2011. Uma extensa programação cultural, desde então, vem sendo pensada para o espaço e engloba desde atividades que são parte do Carnaval até cidade, até shows e intervenções artísticas patrocinadas pela Prefeitura.
Ao lado desta cozinha improvisada, tanques para se lavar roupa foram montados. Aquele espaço que um dia foi cercado devido à segurança, agora era tomado não apenas por pessoas da classe artística, mas também por pedestres e, claro, os “temidos” moradores de rua. A rua se transformou, portanto, em uma casa sem paredes devido ao acesso gratuito à alimentação, à higiene e ao diálogo. No lugar de bancos, cadeiras de praia coletivas e confeccionadas pelo Opavivará! Não se tratava de se sentar sozinho em uma espécie de ilha, mas de aproveitar os encontros que o preencher dos assentos vazios proporcionavam sob a luz do sol.
Abaixo dessa fusão de imagens, o Opavivará! insere uma frase: “Ao amor do público”. Muitos são os modos de ler esta frase. Pode ser uma referência ao “espaço público”, assim como pode se referir aos espectadores do trabalho. Talvez mais, esta frase se refira, tal qual diz o dicionário, a tudo aquilo relativo ao “povo”. Nesse sentido, essa montagem pode se referir àquilo que chamamos de Brasil ou, às vezes de modo preconceituoso, o “povo brasileiro”.
Para tornar esse debate público é inevitável que se faça uma revisão da História do Brasil e que se reveja a própria história da arte. Não esqueçamos que a mesma escada que possibilita a travessia ilegal em 2010 é aquela que aparece na pintura de Pedro Américo no século XIX. É preciso, asim como dito na sentença de Tiradentes, “separar a cabeça do corpo”, ou seja, destrinchar os conflitos sociais e espaciais e lançá-los aos leões, ao centro da arena. Ao colocar todas estas pessoas de diferentes biografias, mas sempre rotulados pelo termo “brasileiro”, em um caldeirão cultural, talvez se possa cozinhar um prato improvisado, mas rico em nutrientes – se não por um longo período de tempo, ao menos por esse tempo efêmero da arte contemporânea que se demonstra potente e capaz de ecoar de modo anacrônico e para além dos limites geográficos do “Novo Mundo”.
(texto publicado originalmente no livro “Contemporary art as a humanization instrument for public spaces”, organizado por Daria Kostina e Elizaveta Yuzhakova e publicado pela Ural University Press, em 2013)