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Sobre a 3ª Mostra Curta Audiovisual


[09 de novembro de 2008]

Se Campinas é, como se costuma dizer, a segunda maior cidade de São Paulo (e a maior cidade dos vários “interiores” do Brasil), é uma surpresa constatar que essa mostra de curtas-metragens esteja ainda em sua terceira edição. Basta passarmos rapidamente nossos olhos no Guia Kinoforum de Festivais de Cinema e Vídeo (http://www.kinoforum.org.br/guia/2008/index.php) para constatarmos que cidades menores já se encontram inseridas no circuito dos festivais – ou, se preferirem, no “mercado de festivais”, como debatido na mesa de comunicações dessa temática na SOCINE deste ano.

O festival contou com duas salas de exibição. A primeira, simpática e com uma boa qualidade de projeção, no MIS (Museu da Imagem e do Som) de Campinas. O outro espaço, um dos auditórios do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UNICAMP, apresentou uma série de problemas, principalmente no que diz respeito ao áudio dos vídeos projetados, o que comprometeu a fruição de algumas obras. Outro dado relativo a este espaço e que merece ser lamentado era o esparso público presente; cheguei a assistir a mais de uma sessão sozinho no espaço. Triste pensar que na própria universidade em que existe um curso de Midialogia os alunos não marcavam presença.

Por falta de tempo disponível, decidi por assistir ao que parece ser o filé mignon da mostra: as sessões de curtas-metragens. Como o pequeno programa afirma, foram 200 inscrições, 74 curtas selecionados e 12 sessões programadas. O tempo total destas, grosso modo, variava entre 1h10 e 1h20, não chegando a cansar o espectador. Infelizmente, nas minhas corridas entre salas de projeção, acabei perdendo dois curtas – “A psicose de Valter” e “6.5 megapixels”. Procurei alucinadamente via internet algum website que os disponibilizassem online, mas nada. Vida que segue e cabeça que pira com outros 72 filmes para ficarem se movimentando perante meus olhos.

Voltando às palavras do programa, desta vez ao texto do comitê de seleção, parece justo fazer uma breve citação:

-->A acessibilidade tecnológica aliada ao alargamento dos espaços de exibição é o que pode fazer com que esta produção seja mais auto-crítica e possa se pensar como curta-metragem, principalmente os de baixo orçamento, independentes, cheios de potência criativa.

A questão que surge é: por onde anda esta “potência criativa” dos vídeos exibidos? Que a maior parte deles tratava-se nitidamente de produções sem financiamento estatal é claro e louvável, da mesma forma que louvo este foco na Mostra do Filme Livre, realizada em terras cariocas. O problema, porém, é a aparente contradição entre este excerto de texto e a minha fruição das obras exibidas durante os quatro dias de mostra. O texto da organização do festival avisa que, diferentemente das edições anteriores, nesta terceira foram permitidas inscrições de curtas com até vinte minutos totais. Se em primeira instância esta iniciativa parece interessante, após assistir a todas as sessões é notável o caráter perigoso das tecnologias digitais.

Colocando de modo mais direto, o digital abre as portas para que qualquer um faça qualquer coisa e, mais importante do que isso, “queime” fitas Mini-DV e produza obras de enorme duração (que, sim, chegam aos vinte minutos agora aceitos) e não tenham um olhar mais cauteloso durante o processo de montagem de suas obras. Dessa leitura minha surge uma categoria de filmes que, junto à outra posteriormente aqui comentada, reinou durante a mostra: os curtas “talking heads” (termo este de autoria de uma amiga também diretora de curtas). Trata-se de documentários em que, aparentemente, o que importa é o depoimento dos seres documentados. Parece que estamos a assistir uma seqüência de bustos romanos, porém em movimento e, claro, com som. Nessa vertente eu poderia listar cerca de vinte curtas exibidos, ou seja, quase 30% do aprovado pela curadoria. Suas temáticas tendem a transcorrer pelo viés da alteridade cultural; estamos lidando com curtas que tentam retratar pessoas pitorescas e ambiências inusitadas – e aí temos o hip-hop no Espírito Santo, catadores de lixo de Campinas, a chegada do celular em uma pequena cidade da Paraíba ou até mesmo a tentativa de biografar Anselmo Duarte.

Os espaços para que respiremos entre os depoimentos é tão curto, chegando mesmo a poucos segundos de paisagem em alguns curtas, denotando uma clara ausência de vontade de pesquisar outras saídas dentro da linguagem audiovisual, que chego a me perguntar se algumas obras não teriam ficado mais interessantes se lidassem com fotografias e arquivos de som, em uma espécie de instalação em espaço museográfico. Pelo menos sobraria um espaço para além da obviedade, para a imaginação do espectador em cima da movimentação labial e facial daquela voz.
A outra constância encontrada por mim é composta pelos temidos “filmes piada”, ou seja, aquelas curtas que parecem existir apenas para darmos uma risadinha (ou para que lágrimas de reprovação escorram). Geralmente possuem um caráter narrativo e uma conclusão um tanto quanto óbvia e estereotipada – vemos na telona machismo nos relacionamentos amorosos, leves preconceitos em relação a classes sociais e ausência de poesia.

Gostaria, caso houvesse tempo e espaço, de destrinchar todas as setenta e duas obras que assisti; escrever textos individuais mesmo. Na ausência destes e já tendo destilado minhas críticas negativas à considerável fatia audiovisual da mostra, cabe agora comentar abertamente as poucas surpresas. Não me deterei em filmes já muito circulados por festivais e que, se não os julgo bons, ao menos considero sua exibição importante para suscitar debates, como é o caso de “Solitário anônimo”, de Débora Diniz, que esbarra diretamente na questão da ética nos documentários, ou mesmo “Engano”, de Cavi Borges, que tem como ponto positivo a utilização de planos seqüência e uma certa poética dos “encontros e desencontros” nas grandes metrópoles. Já tendo começado por elas, retornemos às obras em que as “cabeças que falam”, felizmente, são apenas um detalhe.

Mesmo tendo pegado do segundo quarto do filme (sim, parece importante assumir isso aqui), “O arquivo de Ivan”, de Fábio Rogério, merece destaque dentre o panorama. Se a vontade de documentar Ivan Valença está ali em uma linguagem que poderia ser banal, isso é quebrado pela edição que intercala suas secas falas com imagens fixas do silencioso arquivo. Somando a isso há a opção por inserir imagens da própria equipe, aparentemente, “batendo claquete” com as mãos. Se o arquivo é composto por material relativo a cinema, o filme também acaba sendo sobre o processo de se fazer filmes. Impossível não ser tomado pelas palavras finais de Ivan, que tem consciência de que, ao morrer, levará junto o seu arquivo – e não seriam os documentários, assim como os retratos pintados e fotografias, uma tentativa de presentificar ausências? E os arquivos não são a vontade de preservação do passado, de memórias sociais/pessoais?

Falando em arquivo, marca presença positiva também “Ismar”, de Gustavo Beck – seria este um “filme de arquivo”? Talvez sim, já que maior parte das imagens trata-se de reapropriações de imagens televisivas, contrapostas às imagens mais recentes do Ismar que um dia teve seus quinze minutos de fama, com direito a lágrimas e Jô Soares. Também numa tentativa de resgatar a memória de um indivíduo, mas neste caso através de uma figura pública relevante à cultura nacional, temos “A tal guerreira”, de Marcelo Caetano. O filme investiga as formas de permanência da memória de Clara Nunes em dois espaços diferentes, mas relacionáveis pelo viés da incorporação: um travesti, uma boate, um playback da cantora; um centro de candomblé (ou seria umbanda?) e a transformação de Clara em entidade religiosa. Simples, também com presença de cabeças que falam, mas com preocupações na construção das imagens e na ambientação dos falantes. Potente e, para os fãs, talvez emocionante.

Tão tocante quanto, mas lidando com uma personagem até então desconhecida, “Minha tia meu primo”, de Douglas Soares, também trabalha com a proximidade entre câmera e entrevistado, mas sem a formalidade (câmera fixa, em um tripé, pessoas centralizadas no quadro) da maior parte dos documentários encontrados na mostra. O ganho desta obra é o carisma e o relacionamento afetivo entre diretor e tia-avó, que transparece para além das divertidas falas entre os dois e o canto do pássaro que o sobrinho-neto deve tomar conta, transbordando para as opções audiovisuais.

Em outro viés, “Vida de balcão”, de Luciano Coelho, também parece falar sobre a afetividade entre humanas, porém através da arquitetura, da cidade, dos armazéns curitibanos, daquele tempo em que as pessoas interagiam e as relações humanas não se encontravam tão automatizadas. A câmera é fixa, mas os documentados são apresentados em terceira pessoa; no lugar do “tu” de “Minha tia meu primo” temos aqui um “eles”, de aqueles senhores que ainda freqüentam esses espaços comerciais e que são como que xeretados – os enquadramentos dão-se através de brechas nesses espaços comerciais. Até quando estes espaços de convívio irão manter-se? Há um diálogo de linguagem entre esta obra e “Memórias de sombras”, de Douglas Pinheiro. Neste último caso, porém, os enquadramentos são mais ativos no sentido de, claramente, buscarem imagens esteticamente aprazíveis, mas que não apelem para o rosto das mulheres entrevistadas, atormentadas com suas lembranças de agressivos relacionamentos conjugais. Homens que viraram monstros e mulheres que se unem em busca da cicatrização do passado. Até quando estas humilhações serão arquivadas em suas memórias?

Seguindo nesta tentativa de construção de cruzamentos entre os curtas, mas já esbarrando em outras questões, temos “Dama da noite”, de Ythallo Rodrigues. Se a câmera inicia muito próxima de nossa personagem principal, na segunda metade do curta ela aponta para o distanciamento entre espectador e figura retratada. Essa distância, inclusive, incita-nos a dar alguns passos para trás e perguntar se esta mulher é uma atriz ou outra mulher sem anterior intimidade com a câmera. Seria uma stripper, com um corpo investigado pelos olhos dos mais variados homens, assim como a câmera investiga seu corpo suado?

E as pessoas que aparecem fantasiadas em “Contos de fada”? Diversos são os diretores, diversos são os fantasiados, diversas são as sintonias e as possibilidades de leitura da narrativa que parece transcorrer nessas imagens. Por outro lado, mais importante do que tentarmos entender o que ocorre, é perceber o maravilhamento destes que participam desta experiência artística, que está para além das prisões dos roteiros. Neste exemplo vemos (felizmente) os limites entre ficção e documentário desmoronar. Trabalhando com as vertentes de linguagem de forma mais estanque, definida, mas também em contraste, temos “Tempestade!”, de Douglas Siqueira (sim, temos três filmes interessantes com três Douglas como diretores), produção da casa, também exibido no Festival Brasileiro de Cinema Universitário, de alunos da UNICAMP e que assim como “Contos de fada” dá voz a alguém que geralmente não é ouvido: uma pessoa com deficiência física, um homem cego. O curta opta por mesclar momentos mais documentais deste falando sobre sua rotina com intervenções de um ator/poeta que vaga pela areia de uma praia e discorre versos que tangenciam a temática do olhar. O ápice das imagens é no momento em que há um embate entre este que fala e um grupo de pessoas, em uma irreal refeição às margens do oceano. O contraste entre linguagens antes apresentado aqui é retomado na contraposição entre os pontos-de-vista do jovem rapaz e dos nouveaux riches que instiga.

Outro filme também exibido no FBCU deste ano e que, junto ao fim próximo desta escrita, merece destaque dentre as assim chamadas “ficções” exibidas na mostra, é “Os boçais”, de Lufe Bollini. Uma verdadeira salada mista de referências: um cabaré, dançarinas à la Moulin Rouge, um musical, rock n’ roll, escatologia, sangue e esperma. Machismo? A mim essa leitura não cabe, já que o desenrolar dos atos dos personagens rapidamente rascunhados parece compor um certo mosaico de sua própria boçalidade – “o importante é saber chupar”, como diz um dos personagens principais. O rock n’ roll também faz parte da ambiência de “26 de dezembro”, de Carlos Segundo e Chico de Assis, em que um homem vestido de Papai Noel (ou seria o próprio?) tira um dia de descanso pós-Natal. Música alta, caos dentro do espaço doméstico e cerveja são necessárias. Pêlos e um corpo anti-clássico ganham o primeiro plano. Enquanto em “Os boçais” a montagem e a movimentação de câmera têm velocidade inquietante, a este senhor de barba branca coube ser acompanhado por uma lente que mais parece um mosquito prestes a picá-lo, devido à opção pela câmera na mão e pela forma como passeia próxima a seus objetos. Propostas diferentes que denotam algo pouco encontrado dentro da Mostra Curta Audiovisual e por este que escreve muito valorizado: a pesquisa de linguagem, a busca por caminhos não óbvios na construção das obras audiovisuais. A tentativa de impressão de ousadia, seja pela grandiosidade, seja pelo comedimento. Seja pelo silencio de Ivan e seu arquivo, seja afetividade de Douglas Soares e sua tia-avó, seja pela verborragia do poeta tempestuoso ou seja pelos titubeios do mosquito que acompanha o (nem tão) bom velhinho.

Dando um ponto final a esta prolixa escrita e ansioso pela Mostra Curta Audiovisual do ano que vem, devo destacar aquela obra mais estranha dentre os curtas que acompanhei: “Neosamba”, de Juliano Reina. Cravado nos vinte minutos permitidos pelo evento, trata-se de uma animação que seguiu marretando meus neurônios. Que imagens apresentadas foram essas? Poderíamos chamar estes personagens de “humanos” e “macacos”? Não há falas, apenas uma precisa trilha sonora que se divide em breves músicas instrumentais e ruídos. Os vinte minutos que poderiam parecer duas horas acabam soando como vinte minutos mesmo – cada segundo causa uma má digestão que na verdade faz bem à nossa saúde, pois leva-nos a pensar. O espectador aqui de forma nenhuma é passivo – da mesma forma que a sinopse do curta anuncia que sua narrativa está pautada nas conseqüências da atividade de “comer frutas vermelhas”.

Em um festival, felizmente, comemos todos os tipos de frutas: amarelas, verdes, pretas, brancas e vermelhas. A cada sessão novas surpresas. Em cada curta um diretor diferente, uma cidade diferente e uma proposta estética idem. Se apenas algumas cores acabam por agradar-nos, faz bem a má digestão das outras para que mantenhamos um olhar crítico perante nossa produção audiovisual de circuito, infelizmente, mais restrito. Parece-me, portanto, que uma das formas mais eficientes de analisar um panorama tão vasto de iniciativas audiovisuais é também em formato de árvore, tentando criar relações breves entre estes frutos vistos e, quem sabe (tomara!) nunca expelidos de nosso organismo.


(texto publicado originalmente na RUA - Revista Universitária do Audiovisual em novembro de 2008)
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