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Sobre o 1º Festival do Júri Popular


[15 de março de 2009]

Sigo na árdua missão de refletir criticamente sobre os festivais de cinema no Brasil. Diferente dos outros dois brevemente analisados (o de Juiz de Fora e o realizado em Campinas), nosso exemplo atual é poligeográfico. Além disso, debuta dentro do quadro anual de eventos de cinema. Trata-se do Festival do Júri Popular, cuja sede é a cidade do Rio de Janeiro, mas com sessões espalhadas por mais de 18 capitais brasileiras. Como seu próprio nome anuncia, o objetivo deste evento é como que deixar de lado os habituais júris das programações competitivas, formado pelos chamados “profissionais de cinema” (e aí temos de quase um tudo: diretores, produtores, curadores, técnicos dos mais variados tipos e mesmo acadêmicos) e lançar luz sobre esse elemento que também marca presença nos festivais através do termo “voto do público”. Aqui (estarei sendo cliché e contraditório ao meu ateísmo) “a voz do povo é a voz de Deus”.

A proposta é louvável e ganha importância por dar oportunidade de exibir as mesmas sessões competitivas em diversas cidades, colhendo opiniões dos mais diferentes espectadores dos mesmos curtas. Importante frisar que tais votos eram realizados pessoalmente, ou seja, inexistia algum esquema de votação online, presente em alguns outros festivais, obrigando o espectador a ir até as salas de cinema para exercer o poder de seu voto. Não entrarei aqui no mérito acerca da confiabilidade dos votos populares (já que, como sabemos, é comum que obras das próprias cidades em que os festivais estão sendo sediados recebam esses prêmios, no melhor modo “leve seus amigos até a sala de cinema e peça as melhores notas”), mas, independente disso, parece-me importante a existência desse evento devido a esse ponto de partida conceitual: eliminemos os jurados enferrujados e incentivemos as decisões do “grande público” (isso quando ele não é formado pelos próprios profissionais de cinema, mas tudo bem). Vejamos o que poderá acontecer daí, quais cruzamentos de resultados serão possíveis e se não teremos surpresas que fogem da tal relação “cidade do filme x cidade do festival”.

De quais formas os palpites podem ser dados? Aqui encontramos a divisão dos filmes pelos vulgos gêneros: a ficção, o experimental, o documentário e a animação. Isso me faz lembrar de um ano em que estava no Primeiro Plano e existiam duas categorias polêmicas e excludentes: melhor filme e melhor animação. Ou seja: a animação não concorria ao prêmio de melhor obra; era algo diferente e merecedor de uma gaveta própria. Não é o caso aqui, mas também leva-nos a refletir sobre até que ponto as diferentes propostas estéticas não mereceriam estar em embate. E os filmes que ficam no limite, como “Saltos”, de Gregório Graziosi? E “Nem marcha nem chouta”, de Helvécio Marins Jr.? É um documentário ou um filme experimental? É um documentário experimental ou uma experimentação documental? Por outro lado, dividir os filmes desta forma faz com que apuremos nosso olhar e estabeleçamos comparações mais diretas entre os mesmos, já que teremos de escolher qual, dentro desta tal categoria nos agradou mais e atribuir uma avaliação melhor.

Coroando os outros prêmios possíveis (aqueles clássicos: direção, roteiro, fotografia, edição, arte, trilha sonora, ator e atriz), que não são permeados pelas diferenças de gêneros, existe o chamado “Grande prêmio”. Aqui, ao menos, não existe o incentivo em dividir os filmes em gavetas, mas faz pensarmos, novamente, se é necessário utilizar palavras como “grande” e “melhor”. O que torna a coisa mais suave, em termos, é a avaliação pelo viés dos públicos variados. De qualquer forma, ainda me bate uma vontade ingênua de que todos estes eventos de cinema fossem como o Festival Brasileiro de Cinema Universitário, onde os prêmios são dados através de recortes temáticos e sem a utilização destas palavras, sendo substituídas por “destaque em…”.

Mas vamos aos personagens principais disso tudo: os filmes! Acompanhei as seis sessões competitivas, no Rio de Janeiro, onde o evento era sediado na pouco conhecida sala de projeção do Tempo Glauber, em Botafogo. Estas giravam em torno de uma hora e meia de duração cada, sendo exibidos 41 filmes que, felizmente, apontavam para todos os lados. O número de curtas parece-me feliz; não fui tomado por uma overdose como no Festival de Campinas e, não havendo o recorte temático do Primeiro Plano, era mais que justo que fossem exibidos mais filmes.

Qual a melhor forma de começar a comentá-los? Bem, voltarei à imagem da árvore dos outros dois textos e tentarei ser guiado pelas minhas lembranças. Lá estavam filmes que gosto e já comentei em outras oportunidades, como o super premiado “Os sapatos de Aristeu”, de Luiz René Guerra, o “Coda”, de Marcos Camargo e o “Minha tia, meu primo”, de Douglas Soares. Estavam também os (para mim) já clássicos documentários intermináveis e (às vezes) verborrágicos, geralmente muito informativos ou baseados nas “figuraças”, mas pouco ou nada ousados na linguagem – aprendi sobre cinema baiano, sobre a Boca do Lixo de Sampa, sobre torcedores de futebol (de qual time mesmo?) e ouvi Ivana Bentes opinar sobre o mundo à sua volta, dentre outras coisas. Tínhamos também aqueles exemplos de obras que teria de rever para poder opinar de forma mais contundente. No topo desta lista coloco o “A Armada – o outro lado do Descobrimento”, de Ric Oliveira. Diria que esta foi minha maior incógnita durante a apreciação dos filmes. A animação em si, tecnicamente dizendo, é interessante, mas voltei meus problemas todos para a construção de seu conteúdo, dado através dos pólos “portugueses” e “religiões africanas”, culminando em um terceiro pólo, “indígenas” e um final um tanto quanto histérico. Precisaria ver mais umas duas vezes e resolver (ou não) minhas questões com essas “re”-leituras da história do Brasil. Havia também o“Voltage”, de William Paiva e Filippe Lyra, que, indubitavelmente, é um grande trabalho de animação e de construção de som, mas que enquanto “mensagem cinematográfica”, enquanto “conteúdo” (ecos de Erwin Panofsky aqui) não me apetece nem um pouco. Parece um exercício de técnicas de animação. Ainda fico com o “O jumento santo e a cidade que se acabou antes de começar”, do mesmo diretor: igualmente interessante tecnicamente e ultra criativo e irônico.

Parece que é possível comentar alguns filmes em conjunto, devido às temáticas que dialogam. Podemos começar pela dobradinha “O vampiro do meio-dia”, de Anita Rocha da Silveira e “Eu e crocodilos”, de Marcela Arantes. Um filme carioca (sim, existem planos na praia) e um filme paulistano (sim, existem jovens personagens em uma “balada”). A comparação torna-se possível já pelos títulos. De um lado a figura do vampiro, advinda da literatura e baseada na imagem do sugar o sangue do próximo. Do outro, algo igualmente próprio da natureza (se não nos esquecermos das relações entre vampiros e morcegos), os crocodilos e sua relação com o sangue através do comer a carne dos homens que ousam mergulhar em seus espaços. Dois curtas sobre adolescentes e seus processos de descoberta da sexualidade, da inconstância das amizades e da tomada de posturas. Planos realizados em ônibus; o problema do suor alheio que pinga durante nosso verão carioca e a constância dos flertes com um menino em Sampa. Quem são os crocodilos? Todos nós somos. E é importante termos em mente que o termo está no plural; existe um rodízio de homens no papel do predador. E o vampiro? Seria apenas o menino que fica encantado e seduz sua colega de escola ou não poderíamos ler a coisa de forma inversa, como quando esta “ingenuamente” canta e pula dentro do banheiro feminino e é observada por este? Uma dança da sedução e de um futuro acasalamento, talvez? As diferenças de abordagem também são claras. Enquanto no filme carioca o enfoque é na construção de imagens potentes, como os balões vermelhos ou a eficiente curadoria dos slides que os personagens vêem em uma aula, no filme paulistano temos a presença dos diálogos. Dois tipos: um entre meninas, entre as falsamente iguais, já que são tratadas como um grupo, mas ao mesmo tempo são visíveis as diferenças e inseguranças entre as mesmas, e entre os “outros”, entre o sexo feminino e o masculino – seja entre a personagem principal e aquele crocodilo que escapa, seja entre a mesma e o seu irmão, acusado de ser um “crocodilo enrustido”. Nós também, espectadores, somos vampiros e crocodilos: invadimos o espaço privado destes personagens e como preço a pagar temos nossas memórias levadas a alguns anos atrás e revemos nossas próprias experiências adolescentes.

Com faixa etária semelhante, mas com opções estéticas que apontam para um lado oposto, temos “Poliedro”, de Felipe Moraes. Câmera na mão, noite, não-atores (parecem, ao menos), álcool, cigarros, diálogos aleatórios. Existe uma “precariedade” (nunca consigo pensar em outro termo melhor para esse filme, mas a palavra é usada aqui no melhor sentido possível) nestas imagens, uma entropia talvez, igualmente elogiável. Aqui as coisas não se dão através de um movimento de baixo para cima, ou seja, as imagens não são monumentais, estupidamente bem fotografadas e, poderíamos dizer hypadas. A visão é de cima para baixo, a vida parece confusa e mesmo tosca, assim como aquela sensação adolescente de beber um copo de cerveja e “ficar louco” com seus amigos na porta de uma boate qualquer, munido de sua carteira de identidade falsa. Vagar, assim como esta câmera vaga. Parar na casa de estranhos. Beijar, debater e parar de beijar.

Falando em beijos, também foi exibido “Beijo francês”, de Paulo F. Camacho. Um casal, uma cama, imagens com um brilho memorável e conversas em off. Interessante vermos essa junção entre dois corpos, mas a ausência de ligação direta entre o som e a imagem. Sobre vegetar juntos na cama, sobre estar (também) em um espaço privado e ser invadido pelos olhos de um espectador estranho. E a janela? Existe uma janela ao final de tudo; é o espaço lá fora, é o que não é mostrado, são justamente os momentos em que não é possível “nadar” na cama. São as infelizes ocasiões de interação em que a cama não é mais um trono.

Através do par “dentro” e “fora” é possível também comentar mais alguns bons filmes exibidos. “Casa de máquinas”, de Daniel Erthel e Maria Leite, é todo construído através da ficção do interior de uma caixa de música. Toca no tema de como algo gracioso, como a imagem uma bailarina à la “Coda”, pode ser extremamente complexo por dentro. Para isso o filme lança mão de um trabalho meticuloso de edição de som e de animação tridimensional. Já sobre a perda da capacidade de se ouvir temos “Saltos”, de Gregório Graziosi, que possui cores que dialogam com o “Beijo francês”. Um jovem rapaz, uma piscina e, como o título anuncia, saltos ornamentais. Imagens estáticas e belíssimas do corpo que adentra a água assim como um avião que perfura o céu. O mesmo cuidado e disciplina que deve-se ter na prática dos saltos tanto aquáticos quanto da ginástica olímpica é percebido também na forma como o diretor cria as suas imagens, milimetricamente pensadas e que careceriam de análises individuais em um texto integralmente para o filme. Se este tipo de atleta precisa de um preparo físico e mental sobrehumano e super estável, mas fica frágil pelo início da incapacidade de apreender sutilezas sonoras, nossa personagem de “A mulher biônica”, de Armando Praça, é toda instabilidade. De biônica temos apenas o título; não se trata de uma super-heroína ou de algum personagem tomado por um “realismo fantástico” qualquer. Esta é biônica pela capacidade de circular pelos mais diversos meios (família, trabalho, a cidade, o prazer, as flores) e ainda estar lá, intacta e, aparentemente  (apenas!) com sua moral e respeito inabalados.

Nem mesmo aquela personagem que, alcoolizada, diz poucas e boas a ela consegue retirar o seu ar levemente pedante, mas necessário para que ela siga bionicamente. E como termina isso? Sem transcendências, sem grandes músicas, sem grandes choros. O dia acaba como outro qualquer e amanhã é preciso acordar de novo, ir ao mercado, sentir prazer indo ao cinema e dando lições de moral em parentes e amigas talvez menos biônicas. Mas é preciso não se esquecer que sempre há a possibilidade de voltarmos com as flores que compramos para presentear embaixo de nossos braços, deixando à mostra alguns dos mecanismos de nosso equipamento sobrehumano.

Em “A espera”, de Fernanda Teixeira, temos a mesma imponente presença de um personagem principal, um senil. Se nossa mulher biônica é um personagem de circulação pelos diversos ambientes da cidade, nosso senhor aqui está trancafiado à sua ostentosa residência, cheio de cacarecos inúteis e possivelmente de diversas gerações anteriores. Talvez a sua complexidade interna seja dada pelos inúmeros elementos que o rodeiam, invertendo a relação sugerida pelo “Casa de máquinas”, por exemplo. A única coisa que tem vida ali é o seu cachorro (um dos melhores atores da mostra, diga-se de passagem).

Se o São Jerônimo de Albrecht Dürer tem uma ampulheta e trabalha sem parar com suas traduções, o personagem deste curta lê calmamente e anseia por algo. Ele espera. Mas o cachorro de Dürer, geralmente relacionado com a melancolia nas representações do santo, dorme. Já o cachorro em movimento, creio, é aquele que realmente espera aqui. Após o final da paciência de seu dono, um segundo processo de contagem do tempo começa, mais doloroso ainda que o primeiro. Aí sim, neste momento, sem a companhia de outro animal ou de outro humano, este personagem coloca-se a repousar e talvez o faça até a morte.

Finalizando estes comentários, dois documentários e duas opções de linguagem contrastantes. Em “Tarabatara”, de Júlia Zakia, temos a imersão da equipe no cotidiano de uma família de ciganos: a duração do curta é longa, as imagens têm duração idem, os personagens filmados vão ganhando intimidade com a câmera. Em “Nem marcha nem chouta”, de Helvécio Marins Jr., a distância cultural entre realizador e filmado é dada através da literal distância entre a câmera e o objeto mostrado através da utilização de zooms. Porém, em vez de focar no exotismo do próximo, o diretor enfoca naquilo constante a qualquer ser vivo: a morte. Aproxima um menino que fica tímido do espectador e, imediatamente, aproxima-nos de uma natureza-morta ao chão. Vida e morte, morte e vida. Isso também pode ser percebido, de forma mais sutil, no filme de Júlia Zakia sempre que avistamos a imagem da família de ciganos e notamos suas diferenças etárias e seus possíveis diferentes tempos de espera pela morte e renovação de integrantes. Crianças, mulheres de meia-idade e idosas. As três idades do homem.

Tenho esperança que o novo festival aqui comentado também tenha vida longa. Como todo bom festival, torço para que ele também tenha três idades (ou melhor, mil idades), características ainda mais peculiares, mudanças e novidades. Apelando novamente a um cliché, “vida longa ao Festival do Júri Popular”!


(texto publicado originalmente na RUA - Revista Universitária do Audiovisual em março de 2009)
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