Sonia Andrade
[02 de novembro de 2019]
A artista carioca Sonia Andrade comumente é enxergada como grande referência da arte contemporânea no Brasil no que diz respeito à videoarte – a primeira exposição individual de videoarte realizada no país foi com ela, em 1977, no Museu de Arte Contemporânea de São Paulo. Mesmo tendo realizado uma grande exposição retrospectiva em 2011, no Centro Municipal de Arte Hélio Oiticica, no Rio de Janeiro, menor atenção costuma ser dada aos seus trabalhos feitos com apropriação de objetos, fotografia e desenho. Essas séries formam aquilo que a artista chama por “conjuntos”: grupos de trabalhos que apenas podem ser mostrados em seu todo e a ocupar um espaço específico.
Sua recente exposição realizada no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro não se configura como algo diferente; trata-se também de um conjunto de trabalhos só que até então inédito. Interessante notar que, mais do que um grupo de objetos apropriados, se trata de objetos que efetivamente foram acumulados pelas décadas de sua vida e são anunciados no título da instalação: “... às contas”. Contas relacionadas à sua casa – energia, água, esgoto, gás, telefone fixo, televisão a cabo, celular e internet – foram guardadas por cinco décadas. A ordem dessa lista de contas não é aleatória; o tipo de contas vai mudando de acordo com as mudanças tecnológicas do mundo. Do telefone fixo à conta de internet há um arco temporal que diz muito sobre como a comunicação mudou vertiginosamente na última década.
A artista ocupa um espaço do MAM onde há pouca entrada de luz natural – algo essencial para atingir a forma dramática de sua instalação. Entre as paredes de sua vasta sala, spots de luz nos permitem enxergar diferentes grupos dessas contas que são distribuídos de maneira orgânica. Nosso corpo, portanto, tem uma atividade essencial nessa instalação e é o que permite com que nos locomovamos de grupos de contas para grupos de contas.
Os papéis estão todos presos em outros objetos um tanto quanto inusitados: correntes. Essas ligam o teto da sala ao chão e dispõem as contas de maneira assimétrica de maneira semelhante a um cacho de frutas ou mesmo um molho de chaves. Podemos observar as correntes como elemento formal que estrutura o trabalho e como objeto com caráter simbólico – não estaríamos acorrentados, por toda a nossa vida, a essa série de pagamentos de impostos ao poder público ou de serviços a empresas privadas? De quantas datas de vencimento é feito um ser humano?
Ao caminharmos por esse arquipélago de contas, um elemento causava surpresa: a partir das contas de uma pessoa, Sonia Andrade, era possível fazer um verdadeiro inventário das histórias do Brasil. Algumas contas traziam frases elogiosas à ditadura militar, ao passo que outras dos anos 1990 tinham uma campanha contra os incêndios na Amazônia – o que permanece e o que foi esquecido nesse arco temporal? As cores dos papéis denunciavam a sua temporalidade, assim como os formatos de seus cortes e suas opções de design. O preto-e-branco cedeu lugar à cor, os números a serem digitados foram substituídos por códigos de barra e códigos qr.
A exposição, portanto, dá prosseguimento à carreira discreta, mas constante e sólida de Sonia Andrade. Se em seus vídeos e fotografias percebemos claramente o seu interesse pelo sequenciamento de imagens e a busca pelos vários sentidos que esse ato pode nos trazer, na sua instalação efeito semelhante é feito a partir da maneira como essas temporalidades são concentradas em um só espaço, uma abaixo da outra.
Por fim, não nos esqueçamos que seu título também é aberto e nos convida à imaginação – o que são as reticências de seu termo “... às contas”? Um sujeito, um verbo, outro substantivo usado para fazer uma comparação? Não sabemos – eis um elemento essencial e sem prazo de validade.
(publicado originalmente na edição de dezembro-fevereiro da revista ArtNexus)