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Tá no inferno, abraça o capeta


Adriana Varejão e Paula Rego
[15 de dezembro de 2024]

Vinte e nove anos separam os nascimentos de Adriana Varejão e Paula Rego. O que suas trajetórias têm de encontro e coincidências, também apresentam de dissonância e especificidade. Acho especialmente interessante observar suas diferentes formações e contextos históricos.

Nascida dentro do governo ditatorial iniciado em Portugal por António Salazar – que esteve no poder entre 1932 e 1974 –, Paula Rego estudou na tradicional Slade School of Art, em Londres, entre 1952 e 1956. Fundada em 1871, a escola já era uma instituição de renome e foi ali que a artista pôde realizar, em especial, aulas de modelo vivo – prática que marcou sua trajetória e deixou uma marca em sua pesquisa até ao final de sua vida. Se observarmos seus primeiros trabalhos em pintura e desenho, é por meio da representação do corpo humano – em situações dadas por figuras individuais ou grupos de pessoas – que as narrativas se constituem. Os livros, as revistas ilustradas e os jornais são os objetos de circulação de massa onde a artista irá consultar diferentes culturas visuais que a interessam – assim como, certamente, as visitas a exposições e a ateliês de outros artistas.

Quando observamos a trajetória de Adriana Varejão, também esbarramos com outro regime ditatorial que contorna a sua juventude: as mais de duas décadas que constituem o período militar no Brasil, entre 1964 e 1985. Nascida no Rio de Janeiro, é nesta mesma cidade que a artista irá começar a estudar artes visuais na Escola de Artes Visuais do Parque Lage, instituição criada oficialmente em 1975 e que durante toda a ditadura militar foi enxergada como um espaço de experimentação. Fora de padrões acadêmicos vigentes nos ensinos de belas-artes daquele momento no país, seu grupo de professores reunia nomes como Rubens Gerchman, então diretor da instituição entre 1975 e 1979. As revistas de artes visuais seguem tendo um peso na formação de qualquer artista, mas, em especial quando se vai aproximando o fim da ditadura militar, a televisão, o videoteipe e o rádio desempenham um papel crescente de disseminação de informações.

Se Paula Rego sempre se debruçou sobre uma pesquisa voltada para o corpo humano, Adriana Varejão, em sua juventude, se interessava mais por composições que jogavam com os limites entre certa abstração expressiva e a sugestão de paisagens. No decorrer de sua maior segurança como pintora, na segunda metade dos anos 1980, surgem suas primeiras referências ao chamado “Barroco brasileiro” através de composições que recodificam diferentes culturas visuais no Brasil durante o seu período colonial, em especial a pintura e arquitetura religiosas vistas nas cidades de Minas Gerais, conhecidas por seu importante papel econômico durante o “ciclo do ouro” no Brasil.[1]

Esta exposição estabelece uma conversa temporária no mesmo espaço arquitetônico entre duas artistas mulheres que tiveram, portanto, suas juventudes atravessadas por regimes ditatoriais. Longe, porém, de optarem por um caminho panfletário com imagens que poderiam trazer palavras de ordem e se opor explicitamente ao que acontecia no Brasil e em Portugal, ambas, cada uma à sua maneira, se apegaram ao caráter narrativo e de fabulação que as artes visuais – e em especial a pintura – possibilitam.

Não é à toa que, ao intitular o documentário feito sobre sua mãe em 2017, Nick Willing irá chamá-lo de “Paula Rego, Secrets & Stories”, ecoando não apenas a Casa das Histórias Paula Rego, aberta em Cascais, em 2009, como também uma das muitas frases icônicas ditas pela artista nas entrevistas do filme: “Eu acredito que, quando você faz imagens, elas são tanto sobre o que está dentro de você, sobre como o que está fora de você. Você tem segredos e histórias que quer expor nas imagens”. Esta mesma afirmação poderia se aplicar não apenas à trajetória de Adriana Varejão, mas também a várias e vários artistas que se aprofundaram nas maneiras como as imagens podem recodificar camadas narrativas e históricas – da micro-história[2] e da autobiografia ao regurgitar traumas macrohistóricos e como esses afetam as supostas massas. Eis uma forma de produzir imagens que também possibilita aproximar e distanciar Rego e Varejão: suas habilidades em pesquisar, analisar e manipular diferentes iconografias, contos e, claro, mistérios. Estamos falando de duas artistas que gostam de guardar algum segredo para a hora certa.

Uma pintura exemplar deste interesse das artistas e que certamente será encarada como uma bela surpresa – em especial para o público brasileiro – é a “Primeira missa no Brasil”, de 1993, de Paula Rego, já na primeira sala da exposição.[3] Trata-se de uma pintura que traz outra dentro de sua composição; em primeiro plano, uma mulher grávida deitada sobre uma cama lança um olhar perdido e repleto de dúvidas. Ao fundo, no que parece ser um espaço doméstico, uma imagem relê uma longa tradição iconográfica – não exclusiva ao Brasil, mas a diversos territórios colonizados por católicos – da representação da primeira missa em terra invadida.[4]

Um grupo de homens vestidos chega com a ansiedade de catequizar, armando uma cruz de madeira e trazendo o cálice de consagração do vinho. Ajoelhados e tementes a Deus, eles são espreitados por um grupo de pessoas seminuas de tom de pele escura – a população indígena. Abaixo desta pintura, um olhar atento perceberá, à direita, a figura de uma mulher com os seios expostos, em expressão de dor. Seu corpo está sendo queimado e ela lança os braços e o rosto para o ar como a pedir clemência. A pequena figura ecoa um amplo leque de imagens que vai desde a famosa pintura do “Inferno”, de autoria desconhecida, do acervo do Museu Nacional de Arte Antiga, em Lisboa, a uma imagem como a alegoria da inveja, pintada por Giotto no seu célebre conjunto de afrescos na Cappella degli Scrovegni, em Pádua, do começo do século XIV.

Na esquerda da composição, sobre a imponente figura de um peru, uma mulher que porta um traje branco todo ensanguentado na região de seu ventre é ladeada por um grupo de flores que no Brasil são chamadas de copo-de-leite e em Portugal de jarro. Muito usada em casamentos, a flor é vista como um símbolo de pureza e união – sugestão simbólica exatamente oposta a esta imagem que acena à constatação da violência e, mais do que isso, ao estupro metaforizado (e literalizado) dado pela invasão das Américas.

Estaria esta mulher ao centro em trabalho de parto? Teria sido violada? Estaria prostrada após um aborto? O vermelho que pinta o lençol onde está deitada advém de seu próprio sangue? Como qualquer grande artista, a capacidade de Paula Rego gerar dúvidas e camadas contraditórias de interpretações é ímpar. Este mesmo vermelho aparece de maneira esquemática sobre o branco deste tecido, ao lado do rosto desta mulher, desenhando uma âncora e a silhueta de uma caravela. Como reverter este perverso processo colonial? Não é possível fazê-lo, mas imaginar outros mundos e refletir sobre os traumas consequentes de fatos históricos é o trabalho de uma vida.

Na mesma sala da exposição, esta obra dialoga com duas pinturas de Adriana Varejão também realizadas durante os anos 1990. Um destes trabalhos é uma paródia de um mapa de Lopo Homem, cartógrafo da corte portuguesa durante o século XVI, entre os reinados de D. Manuel e D. João III. Responsável por alguns dos primeiros mapas a representar – mesmo que de forma fantasiosa para os padrões científicos atuais – o Brasil e as Américas, suas imagens utilizavam o termo “mundo novus”, o Novo Mundo. Varejão cria um mapa baseado nas composições do cartógrafo e atribui a ele um formato ovalar. Ao centro de sua pintura, porém, ela opta por fazer um rasgo e, trabalhando com camadas grossas de tinta, sugere uma ferida sobre sua superfície. Olhando atentamente para o azul que representa os oceanos na imagem, notamos pequenas pitadas de vermelho; os mares que conectam são os mesmos que possibilitam a violência, a escravidão e a destruição de diferentes ecossistemas.

Na outra pintura de sua autoria nesta sala, “Filho bastardo II”, suas referências visuais se distanciam do século XVI e se aproximam de diferentes imagens produzidas por viajantes europeus durante os séculos XVIII e XIX, antes e mesmo após a Independência do Brasil em 1822. Ecoando pinturas do francês Jean-Baptiste Debret – artista que viveu no Rio de Janeiro entre 1816 e 1831 e fez parte da comitiva que criou a Academia Imperial de Belas-Artes no Brasil –, nessa perversa cena doméstica vemos, ao lado esquerdo, três homens brancos trajados à moda europeia rodeados por duas mulheres indígenas. Uma delas tem seu pescoço preso ao corpo de um deles. Enquanto isso, à direita, um homem branco penetra uma mulher negra. Abaixo desta mesa, vemos uma criança negra – seria este o filho bastardo ao qual a pintura se refere? Poderíamos enxergar a criança indígena do outro lado da composição também como uma filha bastarda?

Resta-nos uma certeza sobre ambas as pinturas: uma ferida aberta divide as composições e drena a atenção do espectador. Poderíamos enxergar nessa emulação da carne a lembrança de uma vagina – e uma recordação dos infindos abusos sexuais aos quais mulheres não-brancas estão sujeitas até hoje nos territórios um dia (ou ainda) coloniais que se espalham pelo mundo? Estas feridas são vórtices; nosso olhar retorna a elas e nos lembramos que, antes de tudo, estas imagens são pinturas devido à sua materialidade. Assim como Lucio Fontana – artista que Varejão ecoa explicitamente em outras obras, inclusive presentes nesta exposição –, ferir a superfície da imagem nos faz lembrar de que elas não são um espelho do real, mas sim invenções, farsas, distorções.

Este encontro entre estas obras das artistas já traz questões suficientes para aproximá-las, não apenas devido ao seu desejo por jogar com diferentes tempos históricos, como também pelo interesse em aproximar noções de violência ao prazer não apenas de se observar uma pintura, mas também de produzi-la. Ao aprofundarmos nosso olhar sobre as obras de Varejão percebemos como, no decorrer de sua trajetória, o caráter de paródia visto uma obra como a dedicada a Lopo Homem cede espaço a, de forma semelhante ao que Rego faz em sua maturidade, criar situações pictóricas que emulam culturas visuais historicamente distantes e se aproveitam da liberdade de sua condição contemporânea – chegando mesmo a enganar o público de forma inteligente.

Penso em toda a série da artista dedicada à azulejaria produzida com mais afinco durante os anos 1990, mas que possibilitou trabalhos pontuais no decorrer dos anos 2000 e 2010. “Passagem de Macau para Vila Rica”, um quadro de 1992 e uma de suas obras feitas a partir do seu estudo da pintura tradicional chinesa, sugere uma fricção entre culturas indígenas, africanas e orientais por meio de citações de imagens europeias a respeito des culturas não-ocidentais. Nos detalhes de sua composição já percebemos a utilização de craquelados que remetem à importância da azulejaria em Portugal e, posteriormente, em solo brasileiro.

“Proposta para uma catequese: morte e esquartejamento”, de 1993, leva essa experimentação a outro patamar: mesmo sendo uma pintura sobre tela – um díptico –, sua composição emula a extração de um mural de azulejos em processo de restauração, tal qual um mosaico com partes faltantes. Propositalmente há um desencaixe entre ambos os lados da obra que possibilita uma fragmentação da narrativa: do lado esquerdo se vê a figura de um homem que parece estar no centro de um ritual antropofágico, ao passo que do outro lado vemos abaixo o seu corpo ser desmembrado e, acima, ele sendo aprisionado. Quando olhamos a pintura mais de perto, suas feições se aproximam daquelas que convencionamos relacionar à figura de Jesus Cristo. Acima, escrita em latim, vemos uma citação à bíblia: “Assim como o Pai, que vive, me enviou, e eu vivo pelo Pai, assim, quem de mim se alimenta, também viverá por mim” (João, 6:57). Formalmente as cenas remetem à primeira versão das gravuras publicadas no livro “História verdadeira e descrição de uma terra de selvagens...”[5], de Hans Staden, publicado na Alemanha em 1557 e um dos primeiros relatos literários da presença europeia e de seu contato com os Tupinambás no Brasil. Deglutir aqueles que criaram a noção de pecado está na ordem do dia.

“Azulejaria de cozinha com peixes” e “Azulejaria de cozinha com caças variadas”, ambas de 1995, dão prosseguimento a este interesse da artista, mas aprofundam a relação entre figura e fundo, repetição decorativa e monumentalidade das figuras. Peixes, porco e carne de vaca se misturam com fragmentos do corpo humano. Assim como peças de diferentes caixas de quebra-cabeça, Varejão sugere que, ao lidar com fato e imaginação históricas, embaralhar é inevitável; sempre faltarão peças/imagens. Como já pude observar visitando outras exposições da artista, a qualidade técnica da realização destas obras gera uma bem-vinda dúvida ao público: qual a espessura de “verdade” destas obras? Seriam elas, efetivamente, imagens com grande lastro histórico e, portanto, supostamente, com valor documental?

Esta pergunta nos faz olhar novamente para toda a produção de imagens feitas a partir da experiência de artistas visuais e escritores estrangeiros no Brasil durante a sua colonização: quais os limites entre o relato escrito, a imagem desenhada e o vivenciado fisicamente e existencialmente? As respostas seriam tão assimétricas quanto o desejo de seus autores. Comuns às suas imagens e palavras há algo que surge de maneira discreta e metafórica já em “Passagem de Macau para Vila”: à esquerda da composição, no formato de um coração, vemos uma camada de tinta vermelha que remete à carne e que contribui com uma saída do plano e com seu ligeiro caráter escultórico. Assim como visto nas duas obras de Varejão acima comentadas, essa lembrança da carne, suas fendas e tentativas de suturas ressurgem sempre que possível – até a artista realizar obras como “Extirpação do mal por incisura”, de 1994, “Laparatomia exploratória III”, de 1996 ou, com ainda mais veemência escultórica, “Língua com padrão sinuoso”, de 1998, levando sua produção a outra presença espacial. Independentemente das intenções das figuras históricas que narraram a colonização no Brasil, há sempre o fantasma da violência.

Quando movemos o nosso olhar para Paula Rego, notamos como sua produção não se baseia necessariamente na recodificação de episódios históricos relacionados a Portugal. Por outro lado, é inegável que há uma forte carga de interesse na artista em trabalhar com iconografias católicas e propor uma certa revisão do cristianismo. Sendo ela uma artista que viveu grande parte de sua vida entre seu país natal e a Inglaterra, as próprias obras presentes nesta exposição são exemplares de uma pesquisa que lida com iconografias daquilo que se convencionou chamar de “pintura europeia”. Seu tratamento destes tópicos, porém, sempre optou pelo caminho da dúvida e do mistério.

Detendo-nos, por exemplo, dentro da temática dos azulejos, a artista realizou, após uma residência na National Gallery, em Londres, uma série de pinturas entre os anos de 1990 e 1991 para integrarem o seu restaurante. Esse grupo de obras – na exposição representado por três estudos preparatórios de larga escala – conversa com pinturas do italiano Carlo Crivelli, todas datadas da segunda metade do século XV e da coleção do mesmo museu. Conhecido por suas pinturas religiosas e pela sua atenção ao detalhe paisagístico em sua predella – friso com cenas pintadas em miniatura pensadas à margem de uma cena pictórica central –, as imagens do italiano são redimensionadas por Rego. Saem de cena as figuras masculinas e diversas mulheres presentes nas narrativas cristãs e mitológicas – como Maria Madalena, Santa Catarina, Diana e Dafne – se consagram como protagonistas. Essas figuras são contornadas por azulejos que trazem elementos narrativos em segundo plano. A partir da emulação das cores e texturas desta técnica tão cara à cultura portuguesa – e sabidamente de origem árabe –, a artista subverte cânones cristãos.

Algo semelhante é percebido em seu interesse pelas figuras mitológicas das sereias: suas aparições nunca serão pacíficas e sua iconografia é ecoada para que o público revise suas associações com a sedução e a juventude. Quando desenhadas por Rego, elas são colocadas à margem do mar, na areia, em posição de agonia existencial. Quando materializadas escultoricamente, é destinada a elas a senilidade. Içadas, em número de três e colocadas em círculo, essas figuras estão entre a vida e a morte, entre o desejo insistente e o último suspiro. Quando a artista se volta para a crucifixão, não há espaço para Jesus Cristo também: colocado a um nível acima do chão, como não associar a figura do mártir com a de um espantalho? “Scarecrow and the Pig”, de 2005, substitui sua figura seminua pela silhueta do que parece ser uma mulher trajando um vestido verde, mas com um crânio de boi. No lugar do crânio de Adão enterrado sob a base da cruz – algo tão comum na iconografia religiosa desde o paleocristianismo[6] – vemos a cabeça de um porco que parece debochar de tamanho clímax cristão. Não nos esqueçamos tanto da associação feita pela própria bíblia entre o porco e a impureza[7], quanto também a associação mais historicamente recente entre o animal e agentes policiais condenados por sua imoral e gratuita violência.[8]

Esta relação de simultaneidade com os diversos tempos históricos me parece elevada a uma potência ímpar em “O tempo – passado e presente”, de Rego, de 1990.[9] Também produzida durante sua residência na National Gallery, a artista reflete tanto sobre os modos como diferentes gerações lidam com as imagens, quanto sobre as próprias noções de liberdade criativa e de museu. Uma figura ao centro da composição, um homem mais velho, parece observar uma mulher jovem a desenhar sobre um papel em branco. Enquanto isso, à direita, uma criança parece desenhar escondida, por baixo dos cobertores. Ao redor desta sala, imagens que evocam não apenas obras específicas do acervo do museu, mas também a objetos caros à prática da artista: bonecos, uma miniatura de uma caravela e peças de cerâmica. Ao fundo, uma porta que parece dar a uma paisagem aberta e quiçá marítima – há vida, felizmente, fora dos limites dos museus e dos ateliês. É preciso de ar fresco e de luz natural para se continuar criando.

Há aqui um elogio à capacidade de artistas jogarem com diferentes tempos históricos – algo comum a ambas as artistas desta exposição. Seja se apropriando de obras específicas e realizando citações, seja forjando técnicas e/ou elementos de cultura visual que possibilitam obras dignas de camuflagem, ambas as artistas deslocam visualidades de diferentes tempos históricos e nos proporcionam algo semelhante a uma grande colagem, a um ziguezague narrativo, a uma colcha de retalhos. Muitas das imagens ecoadas em suas pesquisas partem de projetos de adestramento – devido ao seu caráter religiosamente dogmático ou devido à sua associação com a colonização de territórios diversos

Como diria o ditado popular, “de boas intenções, o inferno está cheio”. Felizmente, tanto Adriana Varejão, quanto Paula Rego não intencionam educar e edificar o mundo através de suas imagens, mas refletir sobre seus absurdos se utilizando de vocabulários visuais já cristalizados, recusando a dogmatização das imagens e criando deslocamentos que possibilitam ao espectador o benefício da dúvida. Não evitemos nem os nossos infernos individuais e existenciais, nem aqueles que assolaram mutáveis noções de estado-nação; abracemos o capeta.

Como diria Tom Zé, “expliquemos para confundir”.[10]Como diria ironicamente Rita Lee, sejamos como Luz del Fuego[11] e um pouco como essas duas artistas: loucas.[12]


[1] Dentro da historiografia brasileira, se convencionou chamar de "ciclo do ouro" o ciclo econômico dado durante a colonização portuguesa do Brasil que teve a extração do minério como forte atividade econômica durante o século XVIII. O extrativismo se deu especialmente na região do atual estado que - não à toa - é chamado de Minas Gerais. Também longe de ser uma coincidência, algumas das cidades onde essas atividades aconteceram foram batizadas de Diamantina e Ouro Preto. Nelas, grandes projetos arquitetônicos católicos foram desenvolvidos e, junto a eles, artistas visuais do campo da pintura e da escultura criaram obras que exemplificam aquilo que depois se chamou de "barroco brasileiro". Dois bons exemplos são o escultor Aleijadinho (1738-1814) e o pintor Mestre Ataíde (1762-1830).
[2] Conferir GINZBURG, Carlo. A micro-história e outros ensaios. São Paulo: Difel, 1991.
[3]Conferir HOLLOWAY, Memory. “Praying in the sand: Paula Rego and visual representations of the first mass in Brazil” in Portuguese Literary and Cultural Studies, 2000 (primavera/verão), págs. 697-705.
[4] Na tese de doutorado de Tiago Cadete, o autor aproxima o trabalho de Paula Rego não apenas com a “Primeira missa no Brasil”, do pintor brasileiro Victor Meirelles, de 1860, mas também de quadros que a antecedem e que parecem terem sido importantes em sua formação na Europa. O autor faz referência a “Primeira missa nas Américas”, de Pharamond Blanchard, de 1849 e a “Primeira missa na Cabília”, de 1854, de Horace Vernet. Conferir CADETE, Tiago José Nascimento. Enganos: as histórias e ficções entre Portugal e Brasil na arte contemporânea. Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2022, págs. 184-197.
[5] O título completo do livro é poucas vezes citado e me parece digno de nota: “História verdadeira e descrição de uma terra de selvagens, nus e cruéis comedores de seres humanos, situada no Novo Mundo da América, desconhecida antes e depois de Jesus Cristo nas terras de Hessen até os dois últimos anos, visto que Hans Staden, de Homberg, em Hessen, a conheceu por experiência própria e agora a traz a público com essa impressão”.
[6] A associação entre a cruz da crucifixão de Cristo e a caveira de Adão se dá devido à crença de que Jesus foi crucificado sobre o túmulo de Adão. Outras correntes teológicas acreditam que a madeira da cruz de Jesus foi extraída da árvore sob a qual Adão estaria enterrado. Narrativamente, essa era uma maneira de conectar, na narrativa cristã, o primeiro homem criado por Deus com o salvador da humanidade, Jesus.
[7] “É proibido comer carne de porco. Para vocês o porco é impuro, pois tem o casco dividido, mas não rumina. Não comam nenhum desses animais, nem mesmo toquem neles quando estiverem mortos. Todos eles são impuros”. Levítico, 11: 7-8.
[8] Conferir ORTEGA, Adam. “A brief history of the word pig as a slang for police” in Noise Omaha. 02 de julho de 2021. [https://www.noiseomaha.com/resources/2021/7/1/a-brief-history-of-the-word-pig-as-slang-for-police] Acesso em 05 de junho de 2023.
[9] Conferir RUA, Susana; BARRETO, Aura; VIEIRA, Agnelo. “Paula Rego: o tempo – passado e presente ou a pequena história da história da pintura” in Revista de História da Arte, número 10. Lisboa: Instituto de História da Arte, págs. 252-265.
[10] “Eu tô te explicando / pra te confundir / Eu tô te confundindo / pra te esclarecer / Tô iluminado / pra poder cegar / Tô ficando cego / pra poder guiar”. Os versos são extraídos da canção “Tô”, do cantor brasileiro Tom Zé, extraído de seu álbum “Estudando o samba”, de 1976. A composição é do próprio e de Élton Medeiros.
[11] Dora Vivacqua nasceu no Espírito Santo, mas foi criada em Belo Horizonte, Brasil. Em 1937, ela se firmou no Rio de Janeiro. Nos primeiros anos, estudou dança com Eros Volúsia e, em 1944, estreou no teatro de revista. Nesse momento, criou o nome artístico Luz del Fuego e protagonizou espetáculos em que dançava nua com serpentes. Peças intituladas Tentação de Eva, Lenda da Cobra Grande e Baile de Cleópatra chamaram atenção da mídia e do público do Rio de Janeiro, levando a bailarina a viajar pela América Latina e pelos Estados Unidos, o que ampliou seus estudos sobre naturismo. Em 1949, ela tentou fundar o Partido Naturalista Brasileiro, ao passo que, em 1951, lançou a revista Naturalismoe, no ano seguinte, seu livro A Verdade Nua. No ano seguinte, criou o Clube Naturalista Brasileiro, na Ilha Tapuama de Dentro, rebatizada por ela de Ilha do Sol, no Rio de Janeiro. Atraindo diversas celebridades internacionais, Luz del Fuego possibilitou a prática do naturismo, até, infelizmente, ser brutalmente assassinada com seu caseiro por dois homens, em 1965. Seu nome é até hoje evocado no Brasil como símbolo de resistência na luta constante pela liberdade de expressão.
[12] “Eu hoje represento a loucura / mais o que você quiser / tudo o que você vê sair da boca / de uma grande mulher / porém louca!”. Os versos vêm da canção “Luz del Fuego”, de Rita Lee e da banda Tutti Frutti, incluída no álbum “Fruto proibido”, de 1975. A composição é de Rita Lee.


(texto feito para o catálogo da exposição “Paula Rego e Adriana Varejão: entre os vossos dentes”, na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, Portugal, em 2025)
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