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Temporão

Nena Balthar
[27 de setembro de 2013]



O movimento parece ser um dos motes da presente exposição de Nena Balthar. Em torno das paredes da galeria, numa ocupação do espaço que toma das bordas do teto até, literalmente, o chão (numa dobradura fictícia do branco desse cubo), está ladeada uma extensa série de desenhos. Como seu próprio título, “Um desenho para cada dia” diz respeito a uma produção de imagens que tem relação com aquilo que já se sucedeu, a saber, o ano de 2012. O exercício essencial de iniciar as atividades de trabalho e concentração no ateliê através de um desenho feito com nanquim daquilo que via através de sua janela ganha o estatuto de um monumento artístico e, portanto, merece ser lembrado pelas mãos da artista com um caráter memorialista em 2013.

Do mesmo modo que a janela, metáfora de grande parte da tradição da pintura no Ocidente ao menos desde o Renascimento, pode ser em formato de um quadrado ou retângulo, estas folhas de papel optadas pela artista remetem ao próprio recorte segundo o qual poderia observar o seu jardim. O olhar atento perceberá que as linhas mais eretas e retilíneas dos primeiros meses cedem espaço, lentamente, a configurações mais curvilíneas e experimentações não só de diferentes cromatismos do cinza, mas também de figura e fundo. O exercício que poderia ser repetitivo e pautado numa ansiedade pela mimese, se torna espaço para a criação e a imaginação. O ponto de chegada vira ponto de partida. O que parecia ser estático e corriqueiro, ganha movimento e agora pode se movimentar fisicamente através do vento que percorre a galeria e faz com que estas imagens lembrem os calendários que ostentamos em nossas casas.



Outro olhar dimensionado por um recorte de quatro lados é o da televisão. Com “Pour Garrincha”, Nena Balthar faz um vídeo que, mais do que homenagear uma transmissão televisiva poligonal, diz respeito ao girar de um círculo, de uma bola. Garrincha, aquele que é convocado junto com Zito e Pelé para o confronto entre Brasil e Rússia, na Copa do Mundo de 1958, é a estrela do vídeo e uma daquelas da partida. Esse objeto estático, a bola, que apenas faz sentido dentro do jogo de futebol quando acionada pelo corpo dos jogadores e, mais do que isso, pela fé de que é possível faz com que ela entre ou seja distanciada de um gol, também é ressignifcada através do gesto tradicional do desenho através do uso das mãos e, novamente, do papel como suporte.

Das linhas que compõe um diário para os traços brutos dessa forma geométrica perfeita segundo Platão, o círculo. Nanquim sobre papel, grafite sobre um fundo ou, em outras palavras, preto e branco. “Porção escura”, caderno apresentado sobre uma mesa, também depende do movimento, mas por parte do público. Folhear suas páginas é perceber os intervalos de sobreposição e criação de novas composições através do uso da soma de todas as cores e da ausência delas. Também um desenho, mas em formato editorial, poderíamos dizer que é um trabalho que versa sobre o tempo, a distância e o acúmulo...

Mas e o título da exposição, esse “temporão”? Segundo o dicionário, esse livrinho que parece dar certeza de todas as coisas, a palavra tem significados diferentes e que foram dados com o percurso da língua portuguesa. Inicialmente, dizia respeito a algo que ocorre antes do tempo esperado, mas com o decorrer dos séculos, no Brasil, passou a ser utilizado para designar, precisamente, aqueles filhos que parecem nascer depois do tempo biologicamente tido como ideal dos pais.



Tenho a impressão, portanto, que os trabalhos de Nena Balthar reunidos aqui podem ser lidos através desse pêndulo dos diferentes significados dessas palavras. Se os trabalhos versam sobre o movimento dos dias, sobre o mover de uma bola de futebol, ou até mesmo sobre as mãos necessárias do espectador, podemos dizer, por consequência, que eles versam sobre o tempo. Não estaria esse subjugado, ao menos graficamente, ao espaço? E não seria essencial a distância de 2012 para que esses desenhos temporãos tenham nascido? Ou mesmo a entrada em campo, precipitada para muitos, mas celebrada instantaneamente de Garrincha, para que o Brasil vencesse a Copa de 58?

Entre precipitações e lentidões, os trabalhos da artista me parecem ter potência por, mais do que falar sobre arte, tecerem comentários sobre algo maior do que isso, ou seja, a própria vida, seus momentos bruscos e a necessidade, vez ou outra, de freios e retornos.




(texto curatorial da exposição "Temporão", de Nena Balthar, no Estúdio Dezenove, no RIo de Janeiro, entre 8 e 29 de setembro)
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