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The show is over, say goodbye


Victor Arruda
[18 de julho de 2024]

A primeira vez que vi o trabalho de Victor Arruda foi em uma exposição que visitei durante o meu primeiro semestre como aluno do curso de Artes, na Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Fui ao Centro Cultural Banco do Brasil e ali vi a exposição Onde está você, Geração 80?, com curadoria de Marcus de Lontra Costa, em 2004. Não foi pouca a minha surpresa quando me deparei com a série de trabalhos do artista selecionada pela curadoria. Enfocando majoritariamente obras dos anos 1980, a seleção trazia um considerável tom não apenas erótico, mas que chamava a atenção pela forma como o artista se utilizava de palavras escritas para sustentar suas narrativas e – direta ou indiretamente –, tecia comentários sobre o machismo, o classismo e mesmo o racismo da sociedade carioca que, por sua vez, vivia os seus últimos anos de Ditadura Militar.

Convidado a escrever um texto sobre Victor Arruda para essa publicação, me pareceu interessante seguir um caminho não muito comentado na recepção crítica a sua obra. Pensando sobre qual poderia ser o ponto de partida, encontrei um quadro que possibilita outro trajeto interpretativo, com elementos que perpassam a sua pesquisa de forma ampla. Refiro-me à pintura Assunto proibido, de 1989.

A obra vai na esteira de outras séries produzidas desde o início de sua carreira durante os anos 1970, nas quais opta por uma economia cromática baseada nas variações entre o branco e o preto. Essas pinturas se caracterizam por serem mais escorridas em comparação com outros trabalhos. Um olhar rápido sobre essa imagem nos dá a impressão de que foi produzida em um curto tempo devido a tudo aquilo que vaza de seus contornos – o branco do corpo à esquerda está para além de suas linhas pretas, assim como os limites entre figura e fundo da cadeira à direita estão todos confundidos.

Há outra economia de elementos presentes na composição. Um relógio de parede, uma cadeira e aquilo que parece ser a silhueta de uma escada. Estaríamos lidando com um espaço doméstico, algo comum à parte da produção de Arruda? Talvez sim. À esquerda, um corpo branquicento sem rosto parece emergir do fundo da imagem e contrasta com essa figura peculiar que aparenta brotar de algo em sua base que não conseguimos ver. Com contornos que remetem a galhos ou raízes de uma árvore, essa figura cinzenta se transforma em uma cabeça humana também sem expressão. Permeada de pequenos círculos sobre sua superfície, seus tons e textura parecem feitos para gerar uma proposital diferença em relação à figura à esquerda.

Qual narrativa é sugerida por Victor Arruda nessa imagem? Talvez valha a pena voltarmos ao seu título: Assunto proibido. Me pergunto se não poderíamos observar essa imagem como uma reflexão sobre a passagem do tempo. Se aquele relógio à direita tenta dar sentido para as diferenças de luz proporcionadas pela passagem do sol sobre a terra, a cadeira é um objeto feito para o corpo humano e que pode ser associado simbolicamente à espera – basta nos lembrarmos, seguindo um pensamento histórico-artístico mais amplo, das célebres cadeiras pintadas por Gauguin e por Van Gogh, estudos sobre o tempo e a tortuosa amizade entre ambos.

Mas o que esta pintura versa sobre a noção de proibição? Seria o encontro entre essas duas figuras ao centro – uma que reluz e outra que parece ter marcas sobre seu corpo – algo proibido? Qual a razão para tal? Faria sentido ler essa imagem por uma chave mórbida e pensar que quiçá a morte seja esse assunto proibido? Ou talvez a proibição gire em torno do afeto entre essas duas figuras?

No panorama das cerca de cinco décadas de produção de Victor Arruda, essa imagem chama a atenção pelo convite a uma contemplação mais silenciosa. Comumente associado às noções de pastiche, de humor rasgado ou, como diria Paulo Sérgio Duarte, de um “escárnio só”,[1] o artista possui outras imagens que convidam o espectador a se debruçar em um ritmo menos acelerado do que as obras que remetem aos quadrinhos, ao desbunde da informalidade da língua portuguesa e ao seu olhar certeiro para os contrastes inusitados de cores. Há algo noirnestes trabalhos que, tal qual o gênero cinematográfico, nos apresenta uma cortina de mistério e aquele gosto na boca de um cigarro fumado atrás do outro.

É curioso observarmos a primeira fala do artista publicada em um jornal de 1975: “Minha pintura se propõe antes de mais nada a expressar situações humanas, situações geradoras de angústia e de confusão. (...) ‘Kitsch’ entra no meu trabalho, justamente, por estas características: a do humor e a do patético”.[2] Tomemos, então, a rota do patetismo em sua pesquisa.

Durante os anos 1970, algumas de suas pinturas em preto e branco representam cadeiras elétricas. Em plena ditadura militar, Arruda nos mostra cenários onde as cadeiras parecem ter vida própria, ativas perante o vazio de seus assentos. Esses objetos se perpetuam até a década de 1980, quando começam a surgir outras pinturas nas quais é possível ver diferentes corpos humanos escorridos. Em uma delas, No banheiro do navio (1988), aquilo que parece um corpo masculino se desfragmenta perante nosso olhar. Já em Composição com três figuras sorrindo (1989), três anatomias humanas se apresentam também em decomposição para o espectador. Em uma obra sem título do mesmo período, um corpo que possivelmente indica uma ereção masculina é contraposto ao que parece ser o céu de uma cidade com um astro não identificável que brilha ao fundo – discos voadores? Fenômenos naturais? Algum eixo de comunicação entre a vida e a morte?

Fatura pictórica semelhante se percebe em trabalhos como Armadilha,Obrigado e Para sempre e ainda depois, todos da década de 1990. Entre o corpo humano e indicações de elementos como, outra vez, uma escada e a silhueta da cidade, o vigor sexual que muitas vezes é sugerido pelo artista dá lugar a um corpo que é sempre esfacelado – dois corpos masculinos se fundem e Victor Arruda opta por intitular a pintura por Armadilha. É nas armadilhas da sedução e no silêncio das noites solitárias que essas imagens parecem se mover, trazendo ao espectador uma faceta diferente do aspecto solar de outra parte de sua pesquisa.

Essas pinturas possuem algo da movimentação rápida dos pincéis em suas mãos; sempre há algo na forma como a cor preta se apresenta que faz com que a aproximemos de um rascunho desenhado. Durante a mesma década de 1990, essa forma de pintar abre espaço para uma experimentação em grande escala que assume de forma indireta a presença da mão do artista na superfície da tela. Trata-se de imagens que trazem as mesmas silhuetas de um corpo masculino – sapatos, calça comprida, camisa polo e óculos. Eis um corpo humano que pode ser lido como um arquétipo a ser replicado.

Day and night, de 1990, traz essa silhueta que se coloca perante um abismo: a figura em questão estaria prestes a pular ou estaria contemplando o vazio? Neste caso, em tom irreverente, Victor completa seu díptico com outra imagem que traz em cores a silhueta de um homem urinando. Se essa pintura pode trazer algum sorriso ao espectador, as outras dessa série de abismos, que se expande até a primeira década dos anos 2000, nos convidam a reações mais enigmáticas. O pintor, de 1994, coloca a figura perante um grande monocromo cinzento, ao passo que O sedutor, um ano antes deste, joga com as cores azul e vermelho e denota a escala diminuta deste corpo em relação ao seu entorno. Em Hierarquia e O esteta, ambos de 2000, a figura parece ter subido ou descido longas escadas apenas para contemplar essa espécie de vazio universal. Na primeira delas, assim como em outros trabalhos como A conversação e A confabulação, ambos de 1998, dois corpos idênticos se contemplam silenciosamente ao centro da composição. Seriam estas imagens pequenos estudos sobre a solidão? Poderíamos enxergar nelas um certo existencialismo? Como diria outra de suas pinturas dos anos 2000, A ironia é apenas um álibi.

Assim como em Assunto proibido, vemos diversos relógios representados ou mesmo apropriados como ready-made em outros momentos da carreira de Victor Arruda, em especial durante os anos 1980. De toda forma, tenho a impressão de que é longe das literalidades de sua iconografia que o tempo é codificado de forma mais severa e pesada em sua trajetória. Estar em pé diante de um desses abismos que costumam ultrapassar um metro e meio de largura é uma experiência ímpar. Olhar para essas figuras que observam o suposto vazio pictórico é olharmos para os nossos próprios abismos.

Voltando para Assunto proibido, onde já há um certo vazio que será aprofundado nesses trabalhos posteriores, ainda permanece uma dúvida sobre a que o artista se refere no título. Sendo um trabalho de 1989, e tendo em mente a forma como Victor há décadas pensa uma sexualidade queer em sua obra, faria sentido aproximar esse conjunto melancólico – de sua paleta mais monocromática ao silêncio proporcionado pela vigília das horas – à epidemia do HIV, um dos assuntos mais polêmicos e alçado a tabu no decorrer da década de 1980? Quanto tempo resta a essas silhuetas aqui rascunhadas?[3] Ou quanto tempo nós, espectadores, precisamos contemplar essa imagem estática e nos questionarmos a respeito de seu enigma? Ou, citando Susan Sontag,[4] deveríamos refutar qualquer excesso interpretativo de nossa parte? Tudo tem uma interpretação?

Qual a velocidade do tique-taque desse pequeno relógio?

***

Em quatro de maio de 2024, Madonna realizou aquele que pode ser considerado o maior concerto da sua carreira na Praia de Copacabana, no Rio de Janeiro – mesmo bairro onde Arruda vive há décadas. Com estimativa de mais de um milhão e meio de pessoas ali presentes, o show trouxe uma onda de nostalgia. Comemorando os quarenta anos do seu primeiro álbum lançado em 1983, a cantora se apresentou pela primeira vez no Brasil em 1993. Realizar esse show remetendo a ciclos de aniversário fez com que diferentes gerações refletissem sobre o tempo.

Após cerca de uma hora do início do show, Madonna cantou “Hung up”, faixa lançada em 2005, em seu álbum Confessions on a dance floor. A canção é famosa por seus versos iniciais que são repetidos em diversos momentos: “Time goes by, so slowly” (“O tempo passa, tão devagar”). Gritadas a plenos pulmões pela multidão presente no show, essas palavras ganhavam outro contexto nas celebrações do evento – como mensurar a velocidade do tempo em uma carreira tão profícua? Como a geração de Madonna lidava com o tempo em comparação com a aceleração das gerações millennial, Z e Alpha? “Hung up” é uma música sobre uma ligação telefônica; como repensar o tempo e trazer os versos da canção para experiências de comunicação à distância que hoje em dia apelam mais aos textos rapidamente escritos com apenas uma mão, às mensagens soltas de voz e ao uso do vídeo pelos nossos smartphones?

Se perguntássemos a Victor Arruda sobre a velocidade do tempo, será que ele concordaria com Madonna quanto à sua lentidão? Se as pequenas violências e suposta “bruteza” de suas primeiras pinturas apontam para uma cultura visual que se aproxima em certa medida até mesmo do cinema de chanchada, me parece que há algo em parte de sua produção, desde os anos 1980, que definitivamente sugere uma medição do tempo mais plúmbica. Talvez sim, em certos momentos de sua vida e de sua produção como pintor, algumas de suas telas passem mais devagar perante os nossos corpos do que outras.

Caio Fernando Abreu, ao escrever sobre o concerto de Madonna no Estado de São Paulo em 1993, reflete sobre os efeitos sobre o seu corpo e sobre o espaço público do pós-show: “Pelas ladeiras do Morumbi, a noite tinha ficado fria, guardas tentavam organizar um trânsito histérico, os ônibus não vinham, as ruas pareciam sujas, as calçadas destruídas. Fugaz, o sonho passara. Ninguém era mais Madonna. Nem ela, de volta ao hotel, enjaulada lá no alto, enquanto cá embaixo o povo só queria receber uma espécie de autorização – a de que se pode também, mesmo em tempos sombrios e sem graça, ser meio Madonna na vida”.[5]

Tenho a impressão de que essas imagens aqui pinçadas fazem coro a essa sensação de fim de festa apontada por Caio Fernando Abreu; quase como uma Quarta-Feira de Cinzas sem Carnaval anunciado. Seguindo com Madonna, e me lembrando de seu álbum Bedtime stories, de 1994, talvez valha a pena olhar mais uma vez para Assunto proibido e cantarolar repetidas vezes os últimos versos de “Take a bow”: “The show is over, say goodbye”.

[1] DUARTE, Paulo Sérgio. “Tudo desvia”. In: NAVAS, Adolfo Montejo. (Org.). Victor Arruda. São Paulo: Casa da Palavra, 2011, p. 41.
[2] Op. Cit., pp. 272-273.
[3] “O conflito que o mundo tem institucionalizado com outras formas da sexualidade não heterodoxa deixa todas as suas marcas aqui, nesta tensão que percorre toda sua obra pictórica – e outros registros, vídeos, fotos –, em que o corpo é um verdadeiro campo de batalha, não só do prazer. E talvez manifestando outra coisa – a contribuição à questão sexual do movimento gay: a conquista do próprio corpo” (NAVAS, Adolfo Montejo. “Uma pintura crítica”. In: NAVAS, Adolfo Montejo. (Org.). Victor Arruda. São Paulo: Casa da Palavra, 2011, p. 25.)
[4] SONTAG, Susan. Contra a interpretação e outros ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.
[5] ABREU, Caio Fernando. “Na cama por causa de Madonna”. In: O Estado de São Paulo, 14 nov. 1993.


(texto feito para o livro “Victor Arruda”, editado pela Espaço.CC em 2024)
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