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“Toda palavra tem uma gruta dentro de si”


Mariana Manhães
[07 de agosto de 2017]



O primeiro trabalho apresentado por Mariana Manhães em uma exposição data de 2004 e se intitula “Memorabilia 1”. Mostrado no Parque Lage, se trata de um vídeo em que um jarro é filmado em preto-e-branco e mostrado numa pequena televisão cuja estrutura eletrônica fica aos olhos do público. O protagonista do vídeo advém de um campo semântico central às investigações da artista: o recanto da domesticidade e o uso de objetos utilitários banais que, sob sua batuta, saem do campo da apropriação à la ready-made e se transformam em personagens animados. E se os nossos cacarecos falassem?

Nesse período entre 2004 e hoje, sua pesquisa utilizou por diversas vezes estruturas mecânico-eletrônicas que chamam a atenção pelo seu aspecto estranho, assimétrico e não-utilitário. Leves e comumente feitas com estruturas lineares de madeira, pouco a pouco essas estruturas ficaram menos verticais e mais planares em relação ao chão; sacos plásticos, fios e pequenas projeções de vídeo apareceram e ocuparam o lugar central do uso de pequenos monitores. Recentemente, o uso do poliuretano nessas estruturas trouxe uma impressão de peso até então não aparente em sua exploração tridimensional. A elegância de suas primeiras peças foi tomada pelo lento crescer de corpos estranhos com formas irregulares.



A artista segue a trilha de sua inquietude e agora apresenta ao público a exposição intitulada “Toda palavra tem uma gruta dentro de si”. Em um dos espaços da Mul.ti.plo, encontramos à nossa frente uma nova instalação (ou seria escultura?) onde o poliuretano se faz presente e convida o público a circundar esse volume pousado no chão. Em uma projeção, um objeto doméstico emite sons que nos lembram uma fala entrecortada, ansiosa; entre o ofegar da respiração e o clicar rápido da edição de som. Nesse trabalho, o título da exposição já ecoa: todo esforço da fala desses personagens filmados deixa o espectador num lugar de fruição semelhante a uma pessoa que tenta compreender exatamente o que se grita dentro de uma gruta. Muitas são as camadas acústicas, poucas são as certezas palpáveis.

O título proposto para a exposição vem do nome de uma de suas novas séries. Temos à nossa frente um conjunto de trabalhos bidimensionais e constatamos que, por mais que o processo de institucionalização da artista tenha se dado majoritariamente pelos objetos tridimensionais, sua experimentação nos campos do desenho e da colagem nunca cessou. Nessa série chama a atenção a utilização de materiais tão diversos como a fotografia, o grafite, o hidrocor e, por outro lado, fitas de diferentes tipos. Geralmente utilizadas com a finalidade de colar superfícies diferentes, aqui as fitas têm um aspecto também compositivo e acrescentam uma sutil precariedade às imagens de Mariana Manhães.




As fotografias aqui recortadas e coladas registram cavidades de diferentes texturas e cores que, novamente, nos colocam em dúvida quanto à sua origem. Entre o artefato doméstico e o mistério da alegoria da caverna de Platão, esses recortes são circundados por desenhos que sugerem certa organicidade e assimetria compositiva. É notável o desejo de experimentação artesanal por parte da artista, porém essa se dá de maneira sutil e quase cirúrgica, assim como a ordem das palavras e dos versos em um poema também se tratam de pequenas costuras.

Esse processo de experimentar diferentes encontros entre materiais é também ampliado para os objetos domésticos e se transforma em uma série de fotografias cujo título sempre começa por “Etimologia”. A artista propõe junções temporárias entre diferentes cerâmicas e vidros e os congela fotograficamente. Vistos lado a lado, fica clara a relação desses registros com o tempo de acasalamento entre esses recipientes e materiais variados como fitas, pedras, poliuretano e água. Registrados sobre uma superfície de papel, os resquícios das ações físicas da artista se fazem presentes e essas novas “coisas” que suas mãos geraram se transformam em imagens que parecem prenunciar algum tipo de transformação.



Entre o casulo e a borboleta, a estranheza dessas formas aponta para a aglutinação dada na, como escreveu a artista, “relação entre as coisas da casa” – título de um livro seu também recente, feito a partir de fotografias e texto. Com um olhar afiado, Mariana fotografou diferentes objetos, reproduções de obras e aspectos de sua casa. Desse material, fez junções digitais das imagens e chegou a encontros virtuais de ângulos, formas e linhas. O texto presente na publicação está distante de qualquer esforço interpretativo e analítico de sua obra; justamente por isso, é um interessante par às obras aqui mostradas devido à sua capacidade de seguir ficcionalizando junto à ausência de sentido linear para a memorabilia de qualquer lar. O início de sua escrita já anuncia esse tom: “num movimento calado, porém invasivo e até mesmo sádico, as coisas de dentro da casa se unem lascivamente pelas bordas” – e daí sua poesia segue.

Da humildade do meu ponto de vista enquanto crítico, curador e historiador da arte – que tende mais a tentar organizar o mundo do que sabiamente bagunça-lo como faz Mariana Manhães –, espero ansioso por outros momentos devouyeurismo de seus encontros lascivos entre as palavras e as coisas. Que possamos nos perder em outras de suas grutas!


(texto relativo à exposição "Toda palavra tem uma gruta dentro de si", de Mariana Manhães, na Mul.ti.plo, no Rio de Janeiro, entre os dias 20 de julho e 20 de agosto)
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