“Todas as mensagens foram tocadas”
Marco Paulo Rolla
[05 de maio de 2025]
De todas as obras contidas nesta reunião de trabalhos de Marco Paulo Rolla, há uma, em especial, que me chama a atenção pela simplicidade e pela forma como indiretamente comenta os outros trabalhos da exposição. Trata-se de uma rara experiência sua com o áudio, um trabalho de 2006 chamado Enganos. Estruturado narrativamente como uma sequência de recados em uma secretária eletrônica, o público percebe, pouco a pouco, que se trata de vozes que parecem ter telefonado por engano para alguém e deixado mensagens dos mais diversos tipos.
Se algumas mensagens têm algo mais burocrático e efetivamente deixam rastros para uma comunicação futura, outras são exercícios repletos de humor e de um certo nonsense.
Uma pessoa diz:
— É do orelhão da padaria? Alô? Alô? Alô? Alô? Alô? Animal, pode me falar o nome?
Enquanto isso, alguém fala algo ininteligível para a qualidade de uma gravação telefônica daquele momento e repete umas palavras fazendo variações de timbres vocais para concluir, por fim:
— Vai cagar!
Após cerca de sete minutos de escuta, uma voz diz em inglês:
— Todas as mensagens foram tocadas.
E retornamos ao início das gravações.
Esta exposição reúne de trabalhos datados do começo dos anos 2000 a obras feitas especialmente para a ocasião e aponta para um tópico recorrente em seus interesses: as relações entre o corpo humano e objetos eletrônicos. As secretárias eletrônicas eram espaços para uma solitária performatividade entre a pessoa que fazia a ligação telefônica e o vazio do silêncio do telefone. Em outro momento — ou simultaneamente, caso apenas tivesse se recusado a atender a chamada —, do outro lado há outra pessoa, um “público” que as escutava em casa. No início dos anos 2000, quando os celulares não eram tão populares no Brasil e ainda estavam muito distantes da insistente imediatez dos smartphones com Whatsapps e afins, esses aparelhos geravam ansiedade e mistério através do espetáculo do uso da voz. Quantas não foram as vezes em que minha mãe e eu chegávamos em casa e era nítida a sua curiosidade por ouvir os recados na secretária; havia frustração tanto quando passávamos um dia inteiro fora e não havia nenhuma mensagem, assim como quando apenas a respiração de alguém, sem articulação de palavras, era captada pelo telefone.
Esse certo teatro do vazio é constante em muitas das obras aqui selecionadas e que dizem respeito a uma reflexão sobre a produtividade humana. Ao olharmos para uma série de pinturas entre média e pequena escala agrupadas dentro de uma mesma sala da exposição, algo desse ensimesmamento é ecoado. Em Amor capital, amante virtual, uma mulher abraça, de olhos fechados, a tela de um computador; se observarmos as expressões faciais dessas figuras individuais inseridas nas pinturas, todos têm seus olhos cerrados ou olham para baixo de forma que seus olhos estão quase fechados. Não há espaço nessas narrativas para fitar o espectador ou olhar para qualquer outra área dentro dessas imagens que não sejam as telas brilhantes — no banheiro, no avião, no metrô, no sofá de casa: os dedos deslizam para liberar mais informações e os olhos se movem ávidos por formas de distração.
Poderíamos dizer que há algo solitário nessas imagens, mas rapidamente deveríamos nos perguntar: o que essas figuras estão fazendo? Não poderiam estar em diálogo com outras pessoas? Há nesse conjunto de obras uma forte relação com o tempo; estas imagens se posicionam entre o dolce far niente (o “doce fazer nada”) e a produtividade exacerbada estimulada por tecnologias digitais em que enviar um e-mail de trabalho, receber exames de sangue e seduzir alguém com selfiesse intercalam no mesmo minuto. Absortos em suas ações, esses corpos aqui representados e/ou mesmo performados coletivamente trazem um elemento melancólico que nos convida a nos olharmos no espelho: quais as relações que nós mesmos estabelecemos com o tempo? Quantos minutos estaremos dentro desta exposição? Seria possível percorrê-la sem recorrer ao uso do celular?
Há outro grupo de pinturas, todas em escala maior, que traz grupos concentrados em ações que remetem a um ambiente empresarial. Problemas de memória traz três pessoas ao redor de um robusto notebook que parecem observar algo e discutir. Entre a reunião, o trabalho e o prazer de tomar um café, as figuras são apresentadas por meio de uma anatomia que causa certa estranheza na relação entre figura e fundo. Como tanto cromaticamente, quanto à textura das pinceladas não existe grande divisão, a mesa à frente e a parede ao fundo parecem ser uma coisa só e faz com que as figuras pareçam uma colagem.
Essa pintura e outras da exposição trazem indivíduos que, longe de estarem em harmonia, parecem não querer estar juntos na mesma imagem, na mesma mesa, na mesma reunião — e não seria esse o veredito de muitos ambientes não apenas do trabalho corporativo? Há espaço para o desejo em ambientes de tanta estafa? O mesmo pode ser perguntado a partir da imagem na qual um homem trabalha solitariamente diante do seu computador na sala de embarque de um aeroporto ou em outra pintura em que vemos um grupo de repórteres entrevistando um senhor engravatado. Mesmo em uma pintura simplesmente chamada de TV, de 2014, aquilo que se assemelha a pais e seus filhos abraçados em um sofá se converte em algo sem vivacidade banhado pela luz azulada e fantasmática de uma TV de tubo. A virtualidade da imagem se sobrepôs à carne e ao contato entre os diferentes membros de uma família.
Algo semelhante acontece em uma ação performática organizada pelo artista durante a 15ª edição do Videobrasil — naquele momento chamado de Festival Internacional de Arte Eletrônica —, realizado no Sesc Pompeia, em São Paulo, em 2005. Eis que é marcado o lançamento de um livro seu e a realização de uma performance. Quando o público lá chega, percebe que se trata de um vernissage, momento sempre associado a um grande frisson social com muitos encontros, risos, parabéns distribuídos e tilintar de copos de vidro e garrafas com bebidas alcóolicas. Um grupo de cerca de vinte pessoas porta celulares que tocam insistentemente. As pessoas pedem desculpa, e não atendem; o ruído dos toques começa a tomar conta do espaço e gera estranheza. Em dado momento, o artista simplesmente vai ao chão. Como num efeito dominó, os outros performerscaem aos poucos e no chão ficam segurando seus objetos eletrônicos que, se naquele momento eram de ponta, hoje chamaríamos simplesmente de “tijolões”. A obsolescência vem a galope.
O cinza desses aparelhos se confunde com o cinza do concreto do chão e ao redor desse grupo de pessoas, os outros participantes do vernissage, aqueles corpos que poderiam ser lidos como “não performáticos”, se dão conta do óbvio: não há vernissagesem performatividade e sem teatralidade. Haveria, porém, vida sem os celulares? Certamente em 2005 a resposta tenderia mais ao sim, mas poderíamos dizer o mesmo do mundo agora em 2025?
Em sua reflexão sobre a produtividade humana, em especial no que diz respeito às peças em bronze selecionadas para esta exposição, também não há espaço para divisão entre humano e industrializado; tudo é uma só coisa. Mãos são esculpidas acopladas a computadores; pernas presas a um telefone e a um controle remoto; uma faca atravessa uma tela. Extensões dos nossos corpos, o uso constante desses objetos não apenas treina o nosso corpo a partir de ações, mas também o molda muscularmente levando até mesmo a lesões por esforço repetitivo. Aquilo que nos conecta e nos liberta é também aquilo que nos cerceia e nos fere; a humanidade vive, como diz o nome de outra série de seus trabalhos aqui presente feitos em madeira, “a ferro e fogo”.
Esse aspecto de colagem que vemos em suas pinturas e bronzes também pode ser observado em outras séries da exposição nas quais o artista desenha sobre papéis impressos. Extraídos de revistas vintage de turismo, de cinema, de fotonovelas e até mesmo de publicações ilustradas dedicadas a crianças, o artista pinta com tinta acrílica e confunde o espectador quanto à temporalidade dessas imagens. A harmonia das famílias brancas e heteronormativas de algumas imagens começa a ser atordoada, lentamente, por pessoas tirando selfies e falando ao celular. As vitrolas de ontem — também um símbolo de impressionante avanço tecnológico no momento de seu lançamento para os espaços domésticos — são remixadas e ganham, como diz o título da série que batiza a exposição, contrapontos e contratempos.
A prática de Marco Paulo Rolla é muitas vezes associada exclusivamente à performance. O que esta e outras de suas exposições recentes demonstram é o seu claro ímpeto experimental; iniciando sua trajetória durante a intensa década de 1980, esta seleção de trabalhos não deixa dúvidas quanto à sua inquietude que permite a realização de imagens em mídias das mais contrastantes como a pintura, a escultura, o vídeo, o desenho e, claro, as ações performáticas. Como o próprio Marco Paulo gosta de dizer, ele se considera um “artista multindisciplinar”.
Voltando ao nosso título, entre erros e enganos, os seus trabalhos parecem nos perguntar: e agora que tudo foi reproduzido, o que nos resta? O que fazer quando todas as mensagens já foram tocadas? Cedemos à inércia ou, novamente desde os nossos corpos, repensamos a nossa relação com o mundo? Por mais que esta exposição trafegue por uma carreira de mais de vinte anos há, inevitavelmente, uma certa melancolia em suas imagens que nos convidam a nos olharmos no espelho e duvidarmos de nossa suposta sanidade. Longe dos discursos prontos e da obviedade, trata-se de uma pesquisa e de uma carreira que joga todo o tempo com uma ironia que deixa um gosto amargo na boca e que desconstrói, sempre evitando um discurso grandiloquente, muito da normatividade que rodeia a nossa existência.
Abraçar a dúvida, a lentidão e a estranheza do que nos rodeia e daí repensarmo-nos como projeto existencial parece ser uma das saídas sugeridas pelo artista.
(texto feito para o catálogo da exposição “Contrapontos e contratempos”, de Marco Paulo Rolla no Minas Tênis Clube, em Belo Horizonte, Brasil, em 2025)