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Torto


[20 de novembro de 2011]



Em 1549, é finalizado o tratado “Do tirar pelo natural”, que tem autoria do português Francisco de Holanda. É considerado o primeiro texto a versar sobre a arte de se “tirar pelo natural”, ou seja, fazer retratos. Para o autor, todo retrato se dá através do embate direto entre retratista e retratado, sendo necessário que exista um ambiente bem iluminado e silêncio entre os dois durante esse encontro. Além disso, o elemento mais importante de qualquer retrato seria o rosto.

Ao observar os quadros produzidos por Clarissa Campello, é possível refletir sobre sua relação com a tradição clássica. Temos aqui “Retratos”, tal qual o título da exposição, mas seriam eles produzidos como essa doutrina artística? Há o formato da encomenda, mas o processo se dá de modo diverso, ou seja, os comanditários enviaram para a artista retratos (ou autorretratos) fotográficos. Esta selecionou aquele que mais a agradou e, de dentro de sua casa, estabeleceu um embate com a imagem. Trata-se de um diálogo entre a dimensão técnica da fotografia e a artesanal da pintora, o olhar sobre si mesmo do modelo e a recodificação dada pelas mãos da artista. Uma mídia não se sobrepõe à outra; ambas caminham contrastantes e lado a lado.            

Uma galeria de retratos, uma série de rostos colocados dentro da Caza, tal qual troféus retirados de seus pedestais (corpos). Formalmente, estes se aproximam do legado da tratadística? Parece que não. Se a pintura de Clarissa Campello se aproxima da tradição, este fato parece se dar mais pelo suporte em si (pictórico) do que pelo modo como a tinta é transformada em corpo. O último conselho do texto de Holanda é que o pintor, ao terminar um quadro, coloque sobre a imagem um “realce”, uma luz sobre os olhos pintados, a fim de dar a sensação de vivacidade.            

As obras de Clarissa, enquanto isso, parecem possuir diversos espaços de “realce”, seja através das expressões das linhas (rugas) dessas faces, seja pelas marcas das pinceladas que dão uma impressão de movimento. Como a artista disse em uma conversa, “se o quadro não ficar torto, não está bom”. Esta proposital descentralização da imagem soma ao seu distanciamento do Tiziano amado por Francisco de Holanda e a aproxima da obra de Frans Hals. Temos aqui um caso de “clássico anticlássico”.

O lugar da pintura na arte contemporânea é um tópico recorrente: parte da Bienal de Curitiba se dedicou à questão, assim como a Bienal de Praga, grosso modo, é uma "bienal de pintura". Sem projetar aqui qualquer espécie de "retorno da pintura" (algo comum, historiograficamente, nas abordagens da pintura dos anos 80 e da produção dos anos 2000 para cá), de todo modo, a pesquisa artística de Clarissa Campello parece apontar para um tom afirmativo. Sim, há espaço também para a pintura dentro da cena contemporânea e é possível que esta esteja em diálogo com a tradição através de uma interpretação e recodificação da mesma.


(texto produzido para a exposição "Retratos", de Clarissa Campello, realizada na Caza Arte Contemporânea, no Rio de Janeiro, entre os dias 21 de novembro e 03 de dezembro de 2011)
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