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Tramas de contradição


[08 de outubro de 2019]



Entre os anos de 2012 e 2016 tive o prazer de ficar deitado em uma rede de dormir – mais do que isso, fiquei debruçado sobre o objeto, numa tarefa histórica quase do dissecador. Explico: realizei uma tese de doutorado em história da arte no Instituto de Artes da UERJ que girava em torno da equação entre o objeto e o Brasil.

É importante nos lembrar que a rede se trata de uma tecnologia originalmente ameríndia e, portanto, estabelece uma relação ancestral com um largo território habitado por diferentes povos que hoje em dia são considerados diferentes países. Elas podem ser vistas como símbolos de resistência e permanência dos povos originários não só do Brasil, mas do que compreendemos como América Latina. Mesmo com séculos de colonização e com as recentes crises políticas quanto aos direitos indígenas, elas se perpetuaram.

Devido a essa extensa história, a rede balança entre a ancestralidade e a contemporaneidade – o objeto foi e é associado aos mais diversos lugares, culturas e estratos sociais. Ela pode ser o assento da pessoa julgada como preguiçosa – que possivelmente não vem do mesmo lugar do indivíduo que emite o discurso; a rede pode também ser vista simplesmente como um objeto tridimensional dotado de potência escultórica sem necessariamente estar imbuída de um discurso identitário.

O objeto é, portanto, algo que tanto acolhe o nosso corpo, quanto acolhe discursos emitidos com as mais variadas intenções em torno do Brasil, da brasilidade e do que seriam os brasileiros. Cabe a nós, enquanto indivíduos críticos da disseminação e polissemia das imagens, seguir engajados em sua análise e na desconstrução do senso comum e de estereótipos. Estranhar é preciso — sem essa ação, não somos capazes de escrever novas histórias para o nosso futuro.



Precisamos desnaturalizar as imagens e contribuir com a formação de um olhar crítico dos diversos públicos de artes visuais. Esse esforço é o mesmo que devemos fazer quando somos expostos ao excesso imagético (muitas vezes com desejo documental de verdade) de nossos computadores, celulares e caminhadas pelo espaço público do mundo afora. Nenhum estereótipo ou preconceito agente na contemporaneidade carece de lastro histórico – foi com essa crença que essa pesquisa buscou sua força para perseverar.

Uma imagem com a qual me deparei durante a investigação se tornou icônica tanto desse desejo, quanto do momento político que vivíamos nos idos de 2016 no Brasil. Publicada no artigo “Acima dos muros”[1], de autoria da jornalista Eliane Brum, na versão brasileira do jornal El País, a imagem dialogava com o texto que dissertava sobre pessoas que não se enquadravam nem favoráveis ao impeachment da presidenta Dilma Rousseff, nem partidários da leitura dos fatos como um golpe democrático. Para além da dicotomia e do discurso que poderia cair num simplismo entre esquerda e direita, vermelho e azul, estava uma fotografia de autoria do fotógrafo João Luiz Guimarães. A imagem mostra um trecho de um prédio que parece não ser nem de luxo, nem de uma comunidade pobre; poderíamos atribuí-lo à classe média.

Os apartamentos possuem varanda e no centro da imagem chama a atenção o fato de que dois vizinhos ostentam bandeiras diferentes: à esquerda, uma bandeira vermelha e branca do Partido dos Trabalhadores e ao seu lado uma bandeira do Brasil. É uma feliz coincidência o fato de que a fotografia colocava o partido da presidenta da nação (com seus ideais de esquerda) no seu correspondente lado da imagem, ao passo que a bandeira nacional, o símbolo da república do Brasil, do governo militar e das manifestações que aconteceram nas ruas nos últimos meses contra o governo Dilma, se encontra à direita.


Independentemente da postura política desses moradores anônimos, ambas as varandas ostentam redes de dormir logo abaixo dessas bandeiras. O peso cultural de associações possíveis permitidas pela rede pode ser invocado aqui de acordo com o olhar lançado pelo leitor: a rede da esquerda, a rede do partido vermelho, pode ser facilmente vista como o objeto de um corpo preguiçoso como aqueles corpos que foram transformados em memes que clamavam pelo Bolsa Família; enquanto isso, a rede da direita, a rede anticomunista e que clama ideais de nação para dissipar o governo atual, pode ser lida como aquele objeto onde por tantos séculos as pessoas da Casa Grande deitaram e comandaram o Brasil à base de chibatadas e ordens. À esquerda, a rede como espaço do empregado empoderado e temido (ou talvez folgado); à direita, a rede de um fantasma do senhor de engenho que mais se aproxima simbolicamente a um trono.

Qual olhar pode ser lançado para cada um desses espaços e para o todo da fotografia? A resposta varia com o lugar discursivo ocupado por aquele que interpreta a imagem e por seus interesses políticos. Há sempre também a possibilidade de olharmos para essa cena e nos esforçamos por não a enquadrarmos rapidamente nem de um lado, nem do outro – a polissemia interpretativa é bem-vinda e faz falta em um momento histórico em que o compartilhamento expresso de imagens nos exige rapidez.



Foi essa busca pela sobreposição de sentidos possíveis e a manutenção de um estado de dúvida permanente que incentivou não apenas essa pesquisa de doutorado, mas também a exposição “Vaivém”. As redes de dormir constituem uma iconografia que permite com que criemos imagens dos outros e de nós mesmos; esteja você do lado discursivo que estiver, sempre haverá a rede e com ela a possibilidade de seguirmos construindo contraditórios Brasis.


[1]BRUM, Eliane. “Acima dos muros” in El País. Publicação online de 28 de março de 2016. Acesso em: https://brasil.elpais.com/brasil/2016/03/28/opinion/1459169340_306339.html
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