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Um corpo no ar pronto pra fazer barulho


[14 de dezembro de 2018]



Todo trampolim é feito para impulsionar o nosso corpo para o alto e por vezes pra frente – sejam aqueles usados nos saltos ornamentais olímpicos ou uma cama elástica, eles são um convite para sairmos da solidez do chão e uma lembrança da certeza da gravidade. Esta exposição realizada é o resultado de um salto coletivo – desde abril desse ano tenho o prazer de saltar junto aos onze artistas aqui presentes. Cada um projeta o corpo à sua maneira e em uma velocidade diferente.

Após um concorrido edital, esse projeto esteve baseado primeiramente em uma visita a cada um de seus ateliês-casas e depois um seminário em que todos apresentaram seus trabalhos e debateram coletivamente. Oito meses separam nosso primeiro encontro e essa exposição, porém o nosso enfoque sempre foi o mesmo: a experimentação.





Como em qualquer salto ornamental, por mais que se treine excessivamente, nada é capaz de prever o splash final. O mesmo pode ser dito a respeito das pesquisas em artes visuais; interesses afins podem levar a resultados muito diferentes e, longe de buscar um “sucesso”, todos aqui anseiam por pensar e experimentar. Cada artista que participou desse processo foi especialmente convidado a apresentar mais de um trabalho na exposição final. Se a experimentação era a nossa força-motora, porque também não encarar esse mostra como a possibilidade de, perante o público, ocupar cada canto da Galeria D. J. Oliveira? Tentar agrupar e criar paralelos entre suas poéticas é certamente um exercício desafiador e ao mesmo tempo elucidativo do que vivenciamos juntos.

Muitos desses artistas lançaram seu olhar para as noções de casa e domesticidade. Manuela Costa realizou uma série de trabalhos a partir do estranhamento de um espaço que não era o seu – uma casa alugada onde fez uma autoresidência – e de uma série de correspondências trocadas entre si e o seu inconsciente. Vídeo, objetos e textos compõem o seu quebra-cabeça poético que sempre traz ao público um caráter enigmático. Enquanto isso, Lina Cruvinel seguiu com sua pesquisa por meio da pintura em torno de narrativas geradas a partir das visitas de banheiros de pessoas conhecidas. O desejo de reconstituir o espaço do outro pouco a pouco cede espaço à exploração formal de detalhes que levam a sua pintura a um colorismo que causa impacto. Talles Lopes também se interessa pelo espaço doméstico, mas desde uma perspectiva histórica – o que levou os moradores de bairros populares de diversas regiões do Brasil a se apropriarem das colunas que compõem a icônica arquitetura do Palácio do Planalto, em Brasília? Quais os limites entre a arquitetura oficial de um país e seu uso kitsch? Do micro para o macro, o lar é um motivo de pesquisa para todos esses artistas.





Outros artistas, enquanto isso, se interessam mais pelas relações entre os objetos, o espaço público e o mundo do trabalho que confluem em Goiânia. Ana Flavia Marú explora os muitos tipos de voyeurismo desde sua janela – sejam os trabalhadores que dormem nas obras do prédio ao lado, sejam os vendedores da sua calçada. Os tamboretes que aparecem em suas pinturas podem ser vistos não apenas como um sinal do seu interesse pelo design popular, mas também como símbolo de resistência ao trabalho e convite ao descanso. Por sua vez, Carlos Motta Morais também lança seu olhar para objetos específicos como a rede de dormir, os cabos elétricos que ligam uma televisão de tubo e as enxadas. Longe de serem documentos, seus trabalhos os inserem em narrativas ficcionais desenhadas que transformam a banalidade de seu uso rotineiro em algo que beira o fantástico. Por fim, Carlos Monaretta traz para o espaço institucional algo da sua rotina no espaço público – junto a um skate e duas partes da mesma rampa, deixa suas marcas desenhadas no espaço. O público é convidado a imaginar essa ação rápida e expressiva, assim como suas fotografias de um corpo que trabalha vendendo sorvetes na cidade também nos abre espaço para a imaginação.





O tempo, os corpos e as possibilidades de narrativas parecem ser o ambiente de reflexão para outros artistas presentes no projeto. Benedito Ferreira se utiliza da memória familiar recente para dedicar uma série de colagens com remédios para sua avó. Se seus outros trabalhos não lidam de maneira tão direta com a memória de uma pessoa, ao menos se apropriam de materiais e de metáforas que novamente nos remetem à passagem do tempo, à infância e ao cerceamento do corpo. Já Hariel Revignet investiga as relações entre diferentes gerações de mulheres não-brancas que podem ser vistas como antepassadas de sua própria existência. A sororidade e as redes de afeto entre as mulheres são relembradas em pinturas de diferentes escalas onde os materiais das belas-artes são fundidos com outras matérias extraídas da organicidade da natureza. Um olhar atento observará o aspecto de árvore genealógica de sua pesquisa. Hélio Tafner se utiliza de seu próprio corpo para tocar em questões existenciais dialógicas. Recortes de sua anatomia são fotografados e impressos em pequenos pedaços de raio-x que convidam o público a percebe-los em contraste com a luz. Um vídeo traz um repetitivo gesto e som que nos causa estranheza semelhante àquela de encontrar seus pedaços corporais nas radiografias. Estranhar o corpo do outro é estranhar o nosso próprio.





Por fim, compondo o time de onze artistas, Estevão Parreiras e Wander von Wander prosseguem com pesquisas que aprofundam o uso da materialidade de suas linguagens em grande escala. O primeiro, por meio da bidimensionalidade, reuniu toda a sua produção recente de desenhos, rascunhos, serigrafias e pinturas compondo uma grande nuvem de trabalhos em um dos cantos da galeria. A relação entre imagem e texto talvez se configure como algo central na sua pesquisa e o artista parece explorar com destreza os muitos labirintos que o simples ato de colocar lado a lado uma palavra e um desenho figurativo podem nos levar. Já o outro artista experimenta a linguagem da abstração geométrica paralelamente nas linguagens da gravura e da cerâmica. Padrões de desenho se repetem e se modificam aos poucos sendo capazes de se expandir tanto pelas paredes da galeria, quanto também pelo chão. Logo na abertura da exposição ficava claro como a concentração de cerâmicas no chão convidava o público à interação. As abstrações vindas do artista se tornam, então, algo de todos que podem intervir e não observar passivamente a sua instalação.

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Goiás geralmente não é enxergado como um grande centro de produção de arte contemporânea nesse país continental que é o Brasil. Essa impressão precisa ser revista e essas pesquisas aqui rapidamente comentadas o confirmam. O estado – para além de seus artistas já reconhecidos – traz uma geração de jovens artistas articulados que, quando tem o espaço oportuno para mostrarem as suas pesquisas e para serem escutados, sabem fazer um bom barulho.

Acreditem - este é só o começo.


(texto curatorial da exposição coletiva "Um corpo no ar pronto pra fazer barulho", realizada no Museu de Arte Contemporânea de Goiás, em Goiânia, entre os dias  14 de dezembro de 2018 e 17 de março de 2019)
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