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Uma viagem sem volta

[06 de julho de 2013]





Durante o processo de montagem dessa exposição no Largo das Artes, em uma parada rápida para almoçar, me deparei com uma revista cuja capa se intitulava “Fotografia – uma viagem sem volta”. A matéria dizia respeito a uma expedição que partiu da França em 1839, comandada por Augustin Lucas e que tinha por objetivo disseminar a fotografia por um extenso número de cidades. O nome do barco apontava para a consciência das alteridades do percurso: Oriental. Portugal, África, Recife, Salvador, Santos e Rio de Janeiro foram algumas de suas paradas antes de seu naufrágio em Valparaíso, no Chile. Pouco a pouco, segundo o artigo, a tripulação abandonava a missão, brigava com Lucas ou simplesmente fugia para desbravar a vida nos trópicos.

Achei tremenda a coincidência entre o tópico desse texto e o conceito de “A lua no bolso”. Fiquei a pensar, inicialmente, como a fotografia era uma das grandes responsáveis por proporcionar a possibilidade de se recodificar um encontro breve entre indivíduo e espaço geográfico em uma imagem – o daguerreotipo, o cartão postal, os antigos panoramas em espaço público. Logo depois, repensei essa ideia e me pareceu que essa necessidade se encontra alastrada na História em um sentido mais amplo e anterior. Como não se lembrar de Dürer e suas aquarelas que reconstruíam a arquitetura de Nuremberg ou de Marco Polo e as publicações ilustradas de suas viagens?

A necessidade vital de fazer lembrar daquilo que não nos é próprio também se fazia presente através da coleta de objetos exóticos. Os gabinetes de curiosidade, muito comuns nas famílias mais abastadas desde o século XVI, respondiam a isso com o roubo, compra ou mesmo recriação através de pequenas esculturas de objetos ou situações do que era julgado estranho. Nada mais justo, portanto, que o primeiro pisar do homem na lua retomasse esse mesmo princípio, porém já permeado por um excessivo cientificismo.




Há cerca de 44 anos, exatamente no dia 21 de julho de 1969, era publicada na capa da Folha de São Paulo uma matéria intitulada “A lua no bolso”. Com uma escrita nitidamente encantada com os avanços tecnológicos, o repórter relatava o contato de Neil Armstrong com a lua a partir do que era observado pela televisão. O homem não apenas entra em contato físico com o astro, mas também estava “recolhendo com uma espécie de longas pinças, as primeiras amostras do solo lunar”. Sim, a lua existia e a ansiedade humana por desbravar novos espaços e demonstrar um “vim, vi e venci” se estendia para além do planeta Terra. Nessa também “viagem sem volta” (visto que os astronautas e a relação da humanidade com a astronomia nunca mais foram os mesmos), o homem sentiu a necessidade de um registro videográfico através da tecnologia então mais moderna, ou seja, a televisão, esse suporte sobre o qual o repórter lançou o olhar para escrever seu texto.

Essa proposta curatorial retoma esta reportagem como uma metáfora para o contato com aqueles espaços que não são da nossa seara. A lua aqui, portanto, pode querer dizer o “outro”, o longínquo ou aquilo que parece costumeiro, mas que é capaz de ser estranhado pela perspectiva da arte. A imagem aqui é como o pedaço de um espaço dissecado e transformado em objeto artístico, compartilhado com o público como numa demonstração dos resultados de uma expedição espacial. Se um pedaço da lua já esteve no bolso de um homem, diferentes processos artísticos estão aqui organizados neste Largo das Artes. Como diferença, o tom de futurismo palpável que transbordava em 1969 cede espaço para respostas imagéticas permeadas por incerteza e provisoriedade quanto ao desafio de recodificar uma experiência em algo material.




Sem querer impor uma linearidade no trajeto do espectador pelo espaço expositivo, me parece ser possível realizar alguns cruzamentos entre as diferentes propostas artísticas aqui reunidas. Paula Huven realiza uma série de fotografias em que estranha a cidade do Rio de Janeiro a partir de seu lugar de “estrangeira”, isto é, de uma pessoa nascida em Minas Gerais. Como se adaptar a essa outra cidade em que as praias são sobrepostas a um peso fictício da bossa nova? Aniquilar o cartão postal pode ser uma saída tanto para ela, quanto para Iris Helena, criada em João Pessoa, mas atualmente moradora de Brasília. Embebida pela tradição dos panoramas fotográficos das cidades, resolve costurar a vista de seu lugar-natal com o contorno dos anseios da arquitetura modernista no Brasil. O olhar com detalhe e intimista de uma artista se contrapõe a uma tomada ampla e com a certeza do desaparecimento da outra.

Virgílio Neto esteve fora do Brasil durante o seu último Carnaval que rapidamente ganhou a alcunha de “perdido”. Habitando um gelado Canadá por algumas semanas, estranhou as fantasias de escolas de samba então distantes, ao passo que se encantou com o uniforme dos atletas do hóquei de gelo. Surgem homens mutantes. Bet Katona, num movimento oposto, após uma extensa estadia no Rio de Janeiro, retorna à Pécs, na Húngria, berço de sua família. A arquitetura que acompanhava parte de sua lembrança de criança agora vira uma silhueta; o detalhe vira um perfil que apenas pode ser dado através de uma imagem precisa e sucinta.



O corpo de Nena Balthar perfura diferentes concentrações de água cariocas. Com uma câmera presa em sua testa, a linha do horizonte se transforma, por alguns segundos, em um teto, em referência daquilo que está fora do ambiente aquático. A mesma mulher explora e sequencia diferentes geografias da mesma cidade – o Parque Lage, o Piscinão de Ramos, a Lagoa Rodrigo de Freitas. Bettina John, alemã e residente em Londres, também se permite o estranhamento do Rio de Janeiro se utilizando da forma de seu corpo, mas de modo performático. Assumindo seu lugar como não apenas uma, mas cinco gringas, cinco alter-egos em contato com os trópicos, fotografa, é fotografada e cria diferentes álbuns de viagens que problematizam a ideia de viagem, registro visual e texto a partir de pontos de vista destoantes.

O lugar da História acompanha a pintura de Felippe Moraes. Falar sobre o Brasil nem sempre é um convite ao apelo a uma paisagem cliché, podendo ser uma evocação a um dado geográfico e histórico preciso. Ao trazer o ano de 1888, quando uma assinatura da família real provocou consequências que sempre serão problematizadas em nosso país, no lugar da literalidade de uma causa social, parece ser mais interessante deitar sobre o chão e prestar atenção aos desenhos feitos pelas estrelas. As unidades do trabalho de Renata Cruz podem também ser chamadas de histórias, mas sem o peso da historiografia, substituído pelo caráter polissêmico da literatura. Após percorrer o estado de São Paulo e se colocar a desenhar em praças públicas, a artista troca objetos de anônimos por uma pequena publicação de seus desenhos. Nesse sistema em que cada indivíduo comenta sua curadoria íntima, apenas sobra espaço para uma organização que se dá através da forma, mas se modo não hierárquico em que as palavras são motes e não rótulos.






Mônica Rubinho também realiza coletas, mas suas trocas se dão diretamente com a fisicalidade da cidade de São Paulo. Após elencar alguns gravetos e pequenos galhos de árvores, se utiliza de uma estrutura de vidro e os circunda com algodão. Um lustre de casa, um pote de vidro ou um aquário? A muitos ninhos esse objeto remete, mas há ainda a certeza de nosso próprio reflexo em seu centro. O mesmo não me parece ser dito dos trabalhos de Mayana Redin, onde a pedra, sua brutalidade e seus cortes tem lugar protagonista. Seu diálogo não é com os monumentos naturais de uma grande cidade, mas justamente com as intervenções do homem que se assentam e viram também paisagem. Nesse fluxo, um paralelepípedo pode virar meteorito e o homem pode se julgar estranhamente merecedor de um retrato ao lado de uma pedra gigante. Sempre haverá algo no meio do caminho.

Após pensar um pouco sobre esses trabalhos, seja pelo viés desse texto ou espacialmente, achei interessante perceber sobre como todo ato curatorial também tem um quê de “lua no bolso” no sentido de que cada uma dessas pessoas que aqui participa entrou na minha vida a partir de um encontro circunscrito espacialmente. Os nomes próprios aqui serão mais institucionais do que geográficos: Belo Horizonte, Cosmocopa, Galeria IBEU, Itaú Cultural, Largo das Artes, Paço das Artes, Parque Lage, São Paulo e UERJ.

Fazer uma exposição talvez seja sempre um esforço por tentar reunir em um lugar qualquer uma série de pequenas amostras, assim como aquelas coletadas no solo lunar. Criamos conexões, estabelecemos critérios, mas os conceitos e palavras sempre escapam e falham ao tentar dar conta das imagens e, mais do que isso, da vida. Todos esses esforços são, por fim, “viagens sem volta”, mas que me parecem valer a pena. “Nós sempre teremos Paris”, como diria Humphrey Bogart em “Casablanca” – mutatis mutandis, nós sempre teremos a arte como esse lugar de encontro.




(texto curatorial da exposição "A lua no bolso", coletiva no Largo das Artes, no Rio de Janeiro, aberta entre 4 de julho e 18 de agosto)
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