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Vanitas

[05 de janeiro de 2008]



Parece que muita gente já viu "Piaf - um hino ao amor". Meus amigos fizeram os mais variados comentários sobre o filme. Ponto comum entre suas observações era a presença das lágrimas.

Como tendo a fazer a linha "coração gelado", não chorei durante as duas horas de projeção - quase o fiz, especialmente quando brotavam na telona as imagens de Edith em seus últimos anos de vida. Acho bem difícil que alguém não se emocione (também) com a fatídica seqüência dos últimos momentos da vida da cantora, deitada, conversando com uma amiga. Os últimos suspiros, as últimas lembranças, os mistérios que ficam. Definitivamente é um puta filme. Poucos filmes em 2007 fizeram com que eu ficasse voltando às imagens em minha memória, levando-me inclusive a pesquisar sobre a vida e a obra da francesa.

Essa atriz, até então a mim desconhecida, Marion Cotillard, é um escândalo. Impressionante a forma como ela compõe fisicamente, grosso modo, as três fases centrais da vida de Piaf. A mulher que inicia uma carreira, a mulher que tem uma bagagem artística e se apaixona, e a mulher que definha.

Acho que esse filme é como uma daquelas naturezas-mortas, lá de quatro séculos atrás, conhecidas como vanitas. Alguns historiadores da arte lêem essas pinturas como uma advertência quanto à brevidade da vida, tendo algumas delas inclusive inseridas a célebre passagem do Eclesiastes, "Vaidade das vaidades, tudo é vaidade". Quando o diretor de "Piaf" opta por não render-se a uma narrativa mais fechada, ou seja, em que ele apenas seguiria cronologicamente a vida da artista francesa, indo por um outro caminho, em que diferentes tempos são intercalados, parece-me difícil não ter em mente essas pinturas e mesmo essa vertente de pensamento.

Edith Piaf, dona de uma história daquelas que arrepiam, devido aos pequenos sórdidos detalhes, aparece bebendo com amigos, muitas vezes. Em seguida, é mostrada definhando. Teria ela optado pelo caminho das vaidades? Ou podemos ler sua vida e este seu fim dramático como mero reflexo de todos os obstáculos que, nem sempre, ela conseguiu saltar? Talvez nem a própria soubesse nos responder isso. De qualquer forma, ver este filme faz com que pensemos sobre nossas próprias vidas, nossos percursos e nossas escolhas. Por qual caminho seguir? Como gostaríamos de ter nossas vidas mostradas em um filme? Qual a visão do outro sobre nossas trilhas?

Como a própria personagem diz, belamente, ao fim do filme, quando perguntada sobre que conselhos ela daria a uma mulher de sua idade, talvez a única saída (por mais cafona que soe esta afirmação) seja amar. "Ame, ame, ame" - é o que ela responde a três perguntas. Amar no sentido ampliado do termo. Ame os amigos. Ame a arte. Ame perdidamente alguém. Com esses três A’s a vida começa a ganhar algum sentido. Arte, amigos e amor.


(texto publicado originalmente na RUA - Revista Universitária do Audiovisual em julho de 2009)
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