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Vanitas fotografada: considerações sobre fotografia e morte


[26 de setembro de 2012]

Como coloca o grande historiador da arte Jan Bialostocki em seu ensaio “Arte e Vanitas” [1], uma das idéias filosóficas e espirituais mais difundidas é a de que todos os bens, inclusive - ou, sobretudo -  a vida, são transitórios. Como tal, essa ideia aparece em distintas culturas, e em distintos momentos históricos.

Na antiguidade judaico-cristã, o tema da vanitas aparece na literatura, pela primeira vez talvez, nos Eclesiastes (1,2); trata-se da famosa passagem vanitas vanitatum, et omnia vanitas, isso é, “vaidade de vaidades, tudo é vaidade”. Na tradição poética romana, por outro lado, a meditação sobre a transitoriedade da vida desperta sentimentos de natureza hedonista, os quais atingem talvez sua máxima eloquência nos celebérrimos versos de Horácio: “Carpe diem quam minimum credula postero”, isto é, “colhe o dia, quanto menos confiada no de amanhã”. [2] No poema de Horácio, a percepção da passagem inexorável do tempo surge como um elemento de máxima potência no âmbito da construção de uma retórica da sedução: o poeta procura persuadir a amante a entregar-se ao desfrute do momento presente. Júpiter, ou uma força superior cósmica, preside tanto os movimentos do mar quanto o destino do homem; impossível é ir contra ele. O sentido do carpe diem, magistralmente sintetizado por  Horácio nessa ode, possui por sua vez uma longa linhagem grega e serve como modelo para inumeráveis poemas latinos, assim como para dezenas de versos em idiomas modernos, incluindo o português. [3] 

Se no poema horaciano, assim como em outros momentos da lírica latina, a recordação da morte estimula o pleno fruir da vida, na tradição judaico-cristã esses pensamentos adquirem um sentido completamente distinto: a vida mundana, por ser passageira, tem pouca importância, de onde se deduz a necessidade de voltar o pensamento para a esfera puramente espiritual da existência. A assim chamada Idade Média ocidental retoma o conceito estoico do contemptus mundi, isso é, o desprezo pelas coisas mundanas: todos os bens  e deleites transitórios empalidecem ante a permanência da vida espiritual. 

A representação da caveira como símbolo não apenas da morte, mas da transitoriedade da vida, remonta à antiguidade clássica, onde aparece, mais comumente, com o sentido de carpe diem. Em um mosaico romano proveniente de Pompéia e atualmente conservado Museu Nacional de Nápoles (século I d. C.) representa-se um crânio sobre uma borboleta – provável alusão à transitoriedade da vida - e uma roda, atributo das deuses Tiké e Nêmesis, as quais, ambas, eram consideradas profetisas relativamente à vida humana.



A roda, posteriormente, seria associada à imprevisibilidade e instabilidade da fortuna, assim como à arbitrariedade do destino. Sobre o crânio aparece um nivelador de carpinteiro com uma linha de chumbo; à direita, uma bolsa de couro e um bastão de pastor, e à esquerda um cetro com um manto púrpuro. A mensagem é clara: a vida é breve e a morte igualiza a todos, pobres ou ricos. O tema da omnia mors aequat apareceria diversas vezes na iconografia europeia, como por exemplo em uma belíssima gravura do artista alemão Bathel Beham (1502-1540) representando um bebê adormecido ao lado de uma ampulheta, enquanto, em primeiro plano, diversas caveiras jazem empilhadas.



Na Europa, a terrível peste negra de 1348 parece ter-se relacionado à eclosão de representações conhecidas como Triunfo da Morte, nas quais um exército de esqueletos marcha, invencível, sobre inteiras cidades. Fancesco Traini, nos afrescos do Camposanto de Pisa (ca. 1350) foi um dos primeiros a representar o tema que atingiria máxima expressão, talvez, na tela de Pieter Brueghel atualmente conservada no Museu do Prado (1562). Na primeira metade do século XV são publicados os dois livros do texto Ars moriendi, ou A Arte de Morrer, na qual são elencados preceitos e instruções sobre o “bom morrer”. As xilogravuras desse livro, largamente difundidas na Europa, influenciaram por sua vez diversos artistas que criaram representações da morte ou do ato de morrer. Difunde-se, na iconografia cristã, o conceito de recordação constante da morte como um incentivo às práticas espirituais elevadas e ao desprezo pela transitoriedade mundana; caveiras aparecem em retratos familiares, como a recordar tanto aos retratados como aos observadores que toda a beleza e possessões terrenas são passageiras; em imagens de santos, onde parecem funcionar como instrumentos de mediação no processo de meditação; em representações da vida de Cristo e da trindade. Trata-se do célebre memento mori, ou recorda-te da morte, autêntico gênero iconográfico que perpassa diversos séculos.



Uma das mais difundidas vertentes da vanitas nos séculos XV e XVI contrasta a morte, concebida quase sempre como um esqueleto horrível, com uma jovem mulher. O confronto alegórico entre o erotismo e a morte é um antigo topos literário e artístico reelaborado e amplamente difundido, durante o Renascimento, sobretudo pelas gravuras de Dürer. Baldung Grien, seu discípulo, sem dúvida inspira-se nessas gravuras ao produzir seus célebres óleos representando a morte e a donzela, a morte e Vênus, ou a morte e Eva. Na clara tradição do memento mori, essas gravuras e pinturas associam o amor, o sexo, o tempo e a morte, personificada, a partir do início do Quinhentos, por um esqueleto segurando ou apontando uma ampulheta. [4] A partir da trajetória düreriana - o encontro entre a morte e o cavaleiro, a morte e o casal - Baldung Grien recupera a antiga iconografia do encontro entre a morte e a donzela fundindo-o, por vezes, ao das três idades do homem. Em fantásticos desenhos e telas, o clássico encontro entre Eros e Thanatos forma em Baldung acordes que conjugam erotismo e terror, ironia e beleza clássica. Contrariamente a Dürer, Grien cria figuras nuas extraindo elementos tanto da iconografia tradicional de Eva como da vanitas renascentista, gerando imagens nas quais a morte e o erotismo tensionam-se em equilíbrio instável.



Com o surgimento da fotografia em torno de 1825, outro caminho da relação entre morte e arte se estabelece. O ato fotográfico pode ser interpretado metaforicamente como a imagem de um cientista que captura borboletas através de uma rede; o fotógrafo rouba um momento e o congela em uma imagem. Nesse sentido, a fotografia é fruto de uma pequena morte e, mais do que isso, visa a imortalidade contida na possibilidade de se reproduzir por número indeterminado uma imagem. No próprio século XIX se instaura, por exemplo, o costume de se realizar fotografias de pessoas mortas. Trata-se de um modo de se reter a última imagem de um ente querido da família, geralmente, de crianças e idosos, antes do ato do enterro. Mais complexo do que meramente fotografar um cadáver, em muitos dos casos os integrantes ainda vivos realizavam poses ao lado destes corpos próximos a caixões. A necessidade de se permanecer estático devido ao longo tempo de exposição ainda exigido pela fotografia apenas reforçava o caráter dramático, mórbido e de lembrança da morte destas imagens.



Em 2010 o Museu Maillol, em Paris, albergou a exposição C'est la vie! Vanités du Caravage à Damien Hirst. O próprio título da mostra indica já a proposta de transversalidade cronológica – foram exibidos, a título de exemplo, o supracitado mosaico pompeiano ao lado de obras de artistas como Jan Fabre, Cézanne, Cindy Sherman, Yan Pei Ming, Annette Messager e Damien Hirst. A frase c’est la vie,  tão tipicamente conectada à cultura parisiense e tão diversa em conotações, parece corroborar o aspecto múltiplo e contemporâneo da exposição.


Que a proliferação de caveiras e outros símbolos vinculados à morte e à vanitas tenham voltado a proliferar na segunda metade do século XX – e particularmente a partir dos anos 1980 – é de todos sabido. De acordo com os curadores da mostra, o revival do tema relaciona-se, por um lado, à divulgação massiva e planetária dos grandes genocídios que, do Holocausto a Ruanda, marcaram o século; por outro, ao catastrofismo ecologista, o qual, a partir de uma lógica análoga à punitiva judaico-cristã, parece referendar o conceito segundo o qual o mundo irá acabar, e que a culpa é da humanidade; e, finalmente, às fantasmagorias que cercaram o surgimento da AIDS, autêntica peste negra que parecia punir justamente os piores pecadores: homossexuais, promíscuos e usuários de drogas. Tendo em mente esse recorte cronológico, lançaremos luz sobre o trabalho de quatro distintos fotógrafos e sua possível interpretação através da representação da morte.

O último autorretrato do fotógrafo norte-americano Robert Mapplethorpe (Nova Iorque, 1946-1989), precocemente falecido, aos 42 anos, em 1989, fez parte da mostra: um artista já debilitado, justamente, pelas terríveis consequências da AIDS, retrata-se a si mesmo de forma frontal, sobre um fundo escuro, segurando um bastão ao fim do qual aparece uma representação da caveira. Duas cabeças lado a lado e a certeza da breve passagem de um estágio para o outro, do brilho dos olhos, para a escuridão da sua cavidade vazia. O tema da vanitas aparecera em prévios momentos da trajetória de Mapplethorpe; em 2007, inclusive, abriu-se na Espanha a mostra Vanitas de Robert Mapplethorpe, na qual se assinala a forma como os antigos topoi vinculados à transitoriedade da vida permeiam algumas de suas obras.



Em 2007, o fotógrafo Joel-Peter Witkin (Nova Iorque, 1939) produz uma obra desconcertante: uma jovem mulher, reclinada ao modo de uma Vênus, exibe sem pudor sua gloriosa nudez; suas mãos, enluvadas, seguram uma pluma e um espelho, tradicional símbolo da vanitas. Sete cabeças decapitadas, em estado avançado de putrefação, rodeiam a personagem para quem parecem de todo alheias. Witkin retoma, claro está, o antigo tema da morte e a donzela, construindo, a partir de uma série de referências à iconografia cristã dos séculos anteriores, uma nova e potente imagem cujo título – ars moriendi – não deixa margem de dúvidas acerca de suas fontes pictóricas: a arte de bem morrer. A jovem mulher logo envelhecerá, morrerá e será mais um fragmento de cadáver; outras virão, ocupando seu lugar por um minuto apenas. Nessa obra, como outras a cuja tradição pertence, o erótico e o necrótico formam um continuum inquebrantável.



Dos Estados Unidos para o Brasil, de fotógrafos já institucionalizados pela história da arte mundial para jovens artistas em pleno processo de pesquisa. Aline Dias (Itajaí, 1980) produz séries fotográficas que formalmente apontam para o lado oposto de Witkin: realizadas em espaços domésticos ou externos, não se tratam de imagens construídas em um grande estúdio e com figuras humanas bebidas da tradição clássica. Em “Homem de açúcar”, a monumentalidade de Witkin cede lugar a uma narrativa que parece advir de uma fábula: a artista realiza uma pequena escultura de um humano feito de açúcar e o coloca à beira do oceano. Se a fotografia não explicita o desaparecimento da figura, permite, por outro lado, que o espectador complete esta pequena tragédia do jeito que preferir em sua imaginação. Escapar da deterioração parece inevitável e a nossa pequeneza perante o mundo, aqui representado pela paisagem, fica clara nesta imagem.


Em outras obras esta relação entre morte e ludicidade reaparece e pode remeter ao tópico da omnia mors equat, especialmente no que diz respeito ao confronto da imagem de uma criança (ou do universo infantil) e da passagem do tempo. Não à toa, um de seus trabalhos em que a própria artista assopra uma casa feita de material perecível, se intitula “Eu sou o lobo mau”, citação ao conto e à animação “Os três porquinhos” (1933). O homem de açúcar também protagoniza uma série de imagens em que é afogado dentro de uma xícara de café. Enquanto isso, uma mulher de açúcar é transformada em calda em “O que acontece com meninas doces”, de 2004. A pulsão de morte aparece de modo mais ácido em “Homem de sal e lesma”, de 2003. Cinco fotografias anunciam o encontro entre, como o próprio título aponta, outra figura humana efêmera e este pequeno molusco. Como é sabido, ao entrar em contato com o sal, a lesma se desidrata devido à sua rápida absorção e falece. Se nas imagens esse choque não é mostrado, a artista reserva, novamente, um estado de tensão narrativa para o espectador. Mais do que a morte do animal, o próprio homem de sal, muito em breve, irá desmoronar e também morrer.


E se a morte não aparecesse de modo ficcional, mas estivesse contida poeticamente no próprio processo de construção e exibição da fotografia? Pedro Victor Brandão (Rio de Janeiro, 1985) concentra parte de sua pesquisa na relação entre imagem e desaparecimento. Na série “Espólio”, de 2010, realiza pequenas reproduções em cromo de imagens de artistas falecidos cuja obra se encontra sob responsabilidade de seus descendentes. Muitas destas famílias, como, por exemplo, a de Alfredo Volpi, cobram valores exorbitantes para que se possa reproduzir e divulgar estas obras. O artista, portanto, se apropria de modo “indevido”, “ilegal”, destas imagens e dá à reprodução o estatuto de objeto artístico. Em segunda instância, ele as exibe dentro de uma caixa de acrílico iluminada por lâmpadas fluorescentes ultravioletas, ou seja: a cada momento estas cópias de Volpi estarão mais próximas de seu sumiço. Como o próprio fotógrafo escreve, temos a “fotodegradação do direito de imagem”. [5]

Em outro de seus trabalhos que lida com a relação entre História, imagem, memória e esquecimento, na série “Curta”, também de 2010, Pedro Victor Brandão se utiliza do processo fotográfico preto e branco em gelatina em prata. Após o ato de revelação do negativo fotográfico, ele opta por não fixar a imagem, a expondo ao público em um estado de fragilidade da matéria. Sob a luz do sol, as imagens capturadas através da fotografia também desaparecerão, mas aqui darão espaço a uma grande forma geométrica preta. As imagens de um banco de dados composto por computadores e o confronto entre a primeira lei dos direitos autorais, feita na Inglaterra, e a mesma lei atual no Brasil estão fadadas ao desaparecimento. No lugar de abordar a morte pelo viés do apodrecimento do corpo humano, o artista lida com a fotografia enquanto documentação de documentos (dados e leis) da História contemporânea; os bits virarão entulho, as páginas serão queimadas.




Com “Transitório fóssil”, de 2011, Pedro Victor Brandão faz uma espécie de monumento à perenidade fotográfica. Junto à participação de doze co-autores, constrói doze fotografias merecedoras da eternidade da matéria. Para tal, realiza sua impressão à base de carbono e brometo, o que dá um caráter quase que tridimensional à imagem fotográfica e a deixa resistente à fotodegradação. Deste modo, as imagens resultantes possuem uma grande resistência às intempéries podendo ser preservadas por cerca de quinhentos anos. O esforço contra a morte da matéria apenas escancara sua própria inerência; a “super vida” desta série fotográfica nos faz pensar no número de gerações que poderão entrar em contato com estas imagens. Quantos troncos de árvores genealógicas serão podados até que estas imagens anti-esquecimento tenham seu momento derradeiro?

Se fotografar é matar, toda fotografia é um caixão e, como todo objeto, se esforça pela permanência, mas derrapa na transitoriedade. Para se escrever com a luz, como o sentido literal da palavra “fotografia” aponta, é necessária também a sombra; fotografar é se encontrar nas fronteiras entre passado, presente e futuro. Esta reflexão é válida tanto para artistas contemporâneos que exploram os limites da técnica fotográfica até, por exemplo, turistas que se autorretratam, sem grandes pretensões, em uma viagem. Como diz Susan Sontag,

Todas as fotografias são memento mori. Fotografar é participar da mortalidade, vulnerabilidade, mutabilidade de outra pessoa (ou coisa). Justamente por cortar uma fatia desse momento e congelá-la, toda foto testemunha a dissolução implacável do tempo. [6] 

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[1] “Stil und Ikonographie”. Studien zur Kunstwissenschaft. Dresden, VEB Verlag der Kunst, 1966.
[2] O poema completo de Horácio foi vertido ao português de forma exemplar pelo latinista Francisco Achcar:
“Tu não indagues (é ímpio saber) qual o fim que a mim e a ti os deuses tenham dado, Leuconoé, nem recorras aos números babilônicos. Tão melhor é suportar o que será! Quer Júpiter te haja concedido muitos
invernos, quer seja o último o que agora debilita o mar Tirreno nas
rochas contrapostas, que sejas sábia, coes os vinhos e, no espaço
breve, cortes a longa esperança. Enquanto estamos falando, terá
fugido o tempo invejoso; colhe o dia, quanto menos confiada no de
amanhã”. De uma beleza igualmente potente são as traduções de Fernando Pessoa (Ricardo Reis): – “Desfruta o dia de hoje, acreditando o mínimo possível no amanhã” – e Augusto de Campos – “Colhe o dia de hoje e não te fies nunca, um momento sequer, no dia de amanhã”.
[3] Cfr. Achcar, F., Lírica e lugar-comum: alguns temas de Horácio e sua presença em português. São Paulo: Edusp, 1994.
[4] Como observa Van Marle, “a ideia de representar a morte através de um esqueleto parece tão lógica que se pergunta porquê os primeiros exemplos aparecem somente em uma época tão tardia” – isto é, os séculos XIV e XV. É somente na primeira metade do Quinhentos, porém, que a representação da morte como um esqueleto e de cadáveres em decomposição torna-se realmente frequente, sobretudo na França, Alemanha e norte da Itália (Van Marle, R., Iconographie de l’art profane ao Moyen-Age et à la Renaissance. Haia: Martinus Nijhoff, 1932, vol. 2, p. 361 e seg.).
[5] Texto do artista que podia ser encontrado em seu website oficial, agora desativado.
[6] SONTAG, Susan. Sobre fotografia. São Paulo: Companhia das Letras, pág. 26.


(texto apresentado e publicado nos anais do 21º encontro da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas, em setembro de 2012. Realizado em co-autoria com Maria Berbara)
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