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Yuli Yamagata


[21 de maio de 2020]


A trajetória de Yuli Yamagata como artista visual é recente, mas não menos experimental; sua produção tem aproximadamente dez anos – desde a graduação em Artes Visuais pela Universidade de São Paulo até o espaço institucional cada vez maior que recebe no Brasil e exterior. Ao observar sua prática, uma série de constâncias plásticas e poéticas chamam a atenção e são dignas de nota.

É central na sua pesquisa o ato de juntar, colar ou – como vemos em muitos trabalhos – costurar; trata-se de objetos que nos levam a imaginar sua confecção, desde o desenho mental até o encontro com a sua fisicalidade. Esse processo de feitura dialoga, de maneira conceitual, com questões que a artista persegue desde primeiros trabalhos: A relação entre natureza e artificialidade, corpo humano e abjeção, feitura artesanal e a utilização de materiais industrializados.

Um trabalho parece exemplar nesse sentido: Abacaxi (2015). Disposto sobre o chão, o objeto é composto pela junção de tecidos produzidos industrialmente e comprados na Rua 25 de Março, em São Paulo. Em um país estigmatizado pelo imaginário tropical, a presença desse grande abacaxi traz algo de kitsch - não esqueçamos de Carmen Miranda. Mais do que isso, o objeto chama a atenção devido à sua forma: Colocado no chão, assimétrico, com cores vivas e volumes que remetem às coroas das frutas reais, o trabalho se apresenta como um corpo estranho, uma amálgama de simulacros de abacaxis fofos – uma almofada cítrica.

Há humor na imagem da fruta, e isso é latente pela forma inusitada como a artista usa seus materiais; ao manipular a lycra, o algodão das telas e a fibra siliconada, Yamagata convida o público a um universo onde o contorno retilíneo dos corpos disciplinados cede espaço à formas moles e, por vezes, dispersas. A lycra estampada, tecido associado à indústria da moda esportiva, é apropriada pela artista em imagens que mais parecem um elogio às curvas e ao sedentarismo. Bons exemplos dessa experimentação com formas corporais que estão entre o animalesco, o humanoide e o bestial, são Paola e Paulina (2018) e Oroboro(2016).

Em trabalhos dos últimos dois anos, há um dado anterior que se torna explícito: a violência. Como um desenho animado que promove imagens absurdas e às vezes surrealistas de fisicalidade que nos levam ao riso rápido, Yamagata tem transformado sua pesquisa em uma perversa lição de anatomia humana. Formas que remetem a dedos alongados e unhas vermelhas deram o tom inicial a uma série de trabalhos em que é possível enxergarmos orelhas, bocas, línguas e dentes. O corpo humano é espaço de prazer e terror – a boca que deglute a comida é a mesma que proporciona prazer sexual e pode ser o mesmo orifício que profere palavras fascistas.

Narrativas de violência também aparecem em trabalhos feitos com guache e nanquim sobre papel. Nessas imagens, inspiradas nas histórias em quadrinhos, milhos, queijos e humanos lutam pela vida e, por meio não apenas de seus corpos dilacerados, mas principalmente pelas palavras, afirmam a violência. Yuli Yamagata reflete sobre como viver e violentar são verbos que caminham, infelizmente, lado a lado.

Entre o joie de vivre[1] e o memento mori [2] (“lembra-te da morte”), temos à nossa frente uma pesquisa em plena ebulição, atenta aos desastres político-humanitários do presente, mas que recusa qualquer instrumentalização oportunista dos mistérios das imagens à literalidade panfletária.


[1] Expressão francesa que significa “alegria de viver” e é usada com mais frequência desde o século XIX, sendo inclusive título de um livro de Émile Zola, de 1883-84. Geralmente utilizada para se afirmar os prazeres da vida de forma hedonista.
[2] Máxima latina que pode ser traduzida como “lembra-te da morte”. Utilizada de forma moralizante, aparece em textos desde a Antiguidade ocidental e foi instrumentalizada depois das reformas católicas na segunda metade do século XVI. A expressão pode ser lida no polo oposto ao hedonismo: lembra-te da morte, lembra-te que a vida é um sopro.


(texto xxxxxx)
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